Guiado por instrumentos


"Eu quis te convencer
Mas chega de insistir
Caberá ao nosso amor
O que há de vir
Pode ser a eternidade
Mas caminho em frente
Pra sentir saudade"
(Marcelo Camelo)



Em dois momentos da minha vida eu ensinei violão: no primeiro para ganhar dinheiro, quando ainda era estudante universitário e cada centavo me fazia falta. Eu tinha ganhado o instrumento do meu pai ainda na adolescência. E, sozinho, fui descobrindo os mistérios dos acordes. Não dormi no ponto. Anos depois, já quando morava na Residência Universitária Alagoana, a oportunidade de repassar os conhecimentos que a duras penas havia aprendido me apareceu. Um estudante de História da Bahia queria aprender pelo menos uma música para cantar para a namorada no primeiro ano de namoro dos dois. Mesmo que ele não tivesse como pagar, o motivo já me era suficiente. Mas calhou de ele estipular um valor que ambos nos contentávamos. Não chegava a ser uma nota preta, mas para quem estava no vermelho, qualquer valor era de se colorir a vida. E aceitamos por um bom motivo: ele, pelo prazer de tocar uma canção para a amada; eu, pela oportunidade de finalmente não depender do meu pai para pagar minhas passagens de ônibus até a universidade. Comprometidos com os estudos que nos consumia o dia, ficamos relegados às madrugadas, quando toda a residência dormia. Ou tentava. Os insones reclamaram muito: “PQP! Aprende a cantar, carvalho!” (não, carvalho não era o nome dele. Era o que se assemelhava ao palavrão que pudesse ser dito neste texto). Mas o fato é que ele gostou tanto das aulas que algum tempo mais tarde trocou o curso de História pelo de Música – não sei se por conta do mau professor que fui ou pela paixão que a música despertou nele depois do pseudo-aprendizado. Confesso que não quis saber o real motivo. Preferi acreditar que eu tinha colocado um músico na vida. Tá, por ser baiano, a possibilidade de ser um músico de axé era grande, mas preferi não pensar nisso e segurei o tchan. O segundo momento veio muitos anos depois, quando eu nem sonhava em ensinar violão para alguém. E por não sonhar, acabei imaginando que um anjo me pedia para aprender a tocar o instrumento. E me pedia com um sorriso tão encantador que não tive como negar tal desejo. Por alguns dias, eu via seus delicados dedos mal-acostumados com as cordas ensaiando acordes que me faziam dormir e sonhar de alegria. “Eu não vou conseguir”, dizia, em toda a sua divindade. “Consegue, meu anjo”, eu respondia, quase sonâmbulo. E o anjo sorria, sentindo dificuldade pela condição humana de tocar. E assim se foram passando os dias – eu, sentindo-me no céu; o anjo, sobrevoando a terra, em seu voo guiado por instrumento... musical. O primeiro momento em que ensinei violão eu sei que aconteceu, porque se deu numa fase muito difícil da minha vida – e os momentos difíceis a gente tende a não subestimá-los. Vem deles o crescimento humano tão essencial; o segundo, no entanto, por se tratar de um anjo, tenho dúvidas se vivi ou andei sonhando ou morrendo. Mas ainda hoje, sempre que fecho os olhos, vejo esse anjo sentado na rede a dedilhar o violão – as asas a causarem brisa e refrescar minhas memórias recentes. Ao contrário do primeiro aluno, esse anjo não cantava, apenas sorria em cada nota errada que tocava. E eu posso jurar que nunca ouvi melodia mais bonita do que a sua risada.

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    # by Anônimo - 1:21 AM

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    # by Paulinha Felix - 8:28 PM

    Penso que todos que são seus amigos devem se perguntar quem é o anjo da história. Eu acredito que, em grande parte, ele é você. Não parece ser real (ou humano) o que você faz com as palavras. Veja só como elas viram algo belo, encantador, coisas dos anjos! Sorte nossa, que podemos ler e sentir. E dizer o quanto isso nos faz bem. Faz-me bem e eu agradeço!

    Que os anjos continuem cantando, tocando para você e te trazendo mais e mais alegria e inspiração.

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    # by Karla Patricia - 4:31 PM

    Nealdo... Simplesmente lindoooooooo... vc tem o dom de encantar com suas palavras, pois cada frase escrita, cada detalhe, me faz entrar num mundo lindo de encanto, beleza e magia... Parabéns e Obga pela sua amizade!