A flor do meu segredo
Eu devia ter uns 13 anos quando me apaixonei irrecuperavelmente
pela primeira vez. A menina tinha mais ou menos a mesma idade e, embora nos
víssemos todos os dias, pois morávamos no mesmo bairro, ela desconhecia o que
se passava no meu coração. Na verdade, devia imaginar, porque o apaixonado vai
deixando rastros pelo caminho para facilitar o trabalho do cupido que, no meu caso,
nem sabia da minha existência. O jeito era amar calado como quem ouve uma
sinfonia de silêncios e de luz — numa época em que Nelson Motta nem
sonhava em ser parceiro do Lulu Santos em "Certas coisas". Eis que certo dia um amigo percebeu
minha inquietação e quis saber o que estava acontecendo. Para facilitar a
confissão, me ofereceu um copo generoso de batida de maracujá. E mais outro e
mais outro e mais outro. Em determinado ponto, com meus sentimentos destilados — nessa altura meu coração já boiava
entre o gelo o maracujá —,
confessei minha paixão.
— E
por que não se declara para ela? — questionou meu amigo.
—
Porque tenho medo de perdê-la — respondi.
—
Perdê-la como, se você nem a tem?
Sempre que vejo propaganda de trânsito sobre os perigos de se
dirigir sob o efeito do álcool, me lembro do quão perigoso é beber e amar. Nas
estradas que levam ao coração deveria ter uma série de avisos do tipo “se beber,
não ame”. Mas eis que embriagado mais de álcool do que de amor, fui bater à
porta da menina, para enfim confessar a flor do meu segredo — como num melodrama de Almodóvar. Ela ouviu em
silêncio, agradeceu por meus sentimentos, mas disse que não tinha interesse em
mim. Voltei para casa em ziguezague — e já não sabia se era do efeito do
álcool ou da desilusão. Para piorar, meu pai percebeu que havia bebido e me
bateu. Não admitia que um filho bebesse aos treze anos. Eu chorava feito bebê,
mas não era pela pisa. As pancadas de desamor doíam mais que as lambidas do
cinturão nas minhas costas. No outro dia, as dores do corpo desviaram o foco da
alma surrada. E naquele dia tomei uma decisão que mudaria para sempre a
minha vida: deixei definitivamente de beber batida de maracujá. Porque já era
tarde demais para deixar de amar.
O Sindicato dos Jornalistas de Alagoas não me representa
“Para ter inimigos, não precisa declarar guerras, apenas diga o que pensa”.
(Martin Luther King)
Nesta terça-feira, 06 de maio, fui alvo de uma “nota de
esclarecimento” divulgada pelo Sindicato dos Jornalistas de Alagoas. Nela, a
entidade diz que tentei “macular os diretores do nosso sindicato com
especulações irresponsáveis”. A nota é antiética, vil e covarde, primeiro
porque parte de uma instituição legitimada pelo voto para representar e
defender os interesses da categoria, e, depois, porque deturpa as informações.
Por sorte, na visita que o sindicato fez à empresa em que trabalho há uma
semana – e que gerou toda a celeuma – havia mais de 20 colegas, que poderão
testemunhar o fato de que, em nenhum momento, insinuei nada. Fiz, sim, críticas
à entidade, afirmando que o Sindijornal só aparece nas redações para anunciar
prêmios – bancado por instituições privadas – ou uma vez por ano, para lamentar
o acordo coletivo da categoria. Ressaltei ser preciso um mandato mais atuante,
como forma de fortalecer a categoria. E sugeri que em vez de culpar os
jornalistas por não comparecerem às reuniões sindicais – um discurso mofado e
conformista –, o sindicato poderia fazer Assembleias Setoriais pelo menos uma
vez por mês, no pátio de cada empresa de comunicação do estado. Em nenhum
momento falei que sindicalista estava recebendo FGTS em dia, em detrimento dos
que não recebem. Foi um próprio representante do Sindijornal que o disse, em
alto e bom-som. Não entendo o motivo da tal “nota de esclarecimento” – que na
verdade é uma tentativa de jogar um profissional contra a empresa em que
trabalha. O que ela significa? Que não podemos apontar as falhas da entidade?
Que o próximo a fazer isso também correrá o risco de ser exposto de forma vil
junto à empresa em que trabalha, sem ao menos gozar da imunidade sindical que
garante a empregabilidade de muitos? Mantenho minhas opiniões. Num processo
democrático, elas deveriam servir para o fortalecimento de uma categoria.
Infelizmente, o Sindijornal se mostrou imaturo para recebê-las. Já havia se
mostrado assim em outra oportunidade – que não vem ao caso agora. Acredito,
entretanto, que a referida nota não tenha partido do conjunto sindical, porque
ontem mesmo recebi solidariedade de alguns integrantes do sindicato que
desconheciam, até a publicação, o teor do texto revanchista. Uma coisa, porém,
é certa: a “nota de esclarecimento” do sindicato serviu realmente para
esclarecer muita coisa, principalmente para deixar claro de que lado a entidade
está. E este lado, infelizmente, não me representa. Finalmente, parafraseando a
campanha salarial deste ano, gostaria de dizer que os jornalistas alagoanos
valem mais. Valem muito mais do que uma entidade que ataca sua base de forma
ordinária e covarde.
Beleza Roubada
Fiquei
sabendo agora que um homem roubou um lote de Botox de uma clínica de beleza no
interior do Estado. Assim, na cara dura. A notícia me fez lembrar imediatamente
do meu pai, que a vida inteira me ensinou que roubar é feio. Mesmo assim, confesso
que fiquei pensando na quantidade de pessoas que deverá desfilar por aí, com a
beleza roubada, uma cena que deve ser coisa de cinema. Além do Botox, o homem
levou kits importados de coloração e tratamento de cabelos. Veja bem: antigamente,
uma notícia cabeluda dessas deixava a gente de cabelo em pé. Hoje, pode deixar
de cabelos coloridos e lisos. Eu sei que já estamos carecas de saber que a
violência está correndo solta no Estado. Mas agora, além de solta, correrá com
os cabelos esvoaçantes e com aparência jovial. Dizem que o ladrão chegou a ser
flagrado pelas câmeras do estabelecimento, mas quem assistiu ao vídeo garante
que não havia ruga de preocupação por parte do infrator. E se houvesse,
convenhamos, nada que uma ampola de Botox não resolva. De uma coisa eu tenho
certeza: se quiser, o acusado pode se dar ao luxo de sair bonito até no retrato
falado. Ou usar o objeto do roubo para disfarçar a aparência. Sei lá, tem
cara-de-pau para tudo nessa vida. A polícia suspeita de que o roubo tenha sido
por encomenda, dada a forma como o ladrão agiu. Não duvido. Vai ver que quem
encomendou o roubo é daqueles que pensam que, de graça, até injeção na testa. Principalmente
se a injeção for de Botox. Bonito, isso!
Sistema bruto
Não
lembro a época em que senti tanto calor como por estes dias. Até
tentei me lembrar, mas meu cérebro derreteu. E nem foi de tanto
pensar. Eu sei que o sol nasce para todos, mas a sensação que eu
tenho é de que, em Alagoas, todos os sóis resolveram nascer para
cada cidadão. E nem adianta pedir proteção aos santos. A não ser
que o santo seja o “SãoDown” - santo protetor dos raios UVA e
UVB e UVC. (E olhe que nesse calor a gente precisaria de proteção
contras os raios UV Alfabeto Inteiro). Outro dia presenciei uma
mulher brigando com um vendedor de loja por causa de um
ar-condicionado. Ela reclamava de que o aparelho não dava vencimento
e tentava devolvê-lo. Não sei quem estava com a razão, mas percebi
que tentar vencer o calor por estas bandas pode ser a maior fria.
Aliás, aparelho de ar condicionado é uma compra que a gente só faz
no calor das emoções, para depois suar muito para conseguir pagar
as 24 suaves prestações. Enquanto isso, o Sol fica lá, achando que
tudo gira em torno de si. Sei não, mas esse, sim, é um sistema
(solar) bruto.
Inteligência
Pesquisa divulgada pela revista
Superinteressante ano passado revela que deixar de comer carne, gostar de
chocolate e pensar mais em sexo lhe tornam mais inteligente. Ou seja: para me transformar
num Einstein, só me falta deixar de comer carne e gostar de chocolate. Ao tomar
conhecimento do estudo, meu amigo Marcos não se conteve. Bateu no peito e se
vangloriou de ter um QI que beira os 500. Parabéns para ele, porque o meu deve
ter tarado —ops! parado—
no 69, o que significa que devo ter uma inteligência de pinto. Mas isso não me
põe pressão. A minha já anda alta o suficiente, o que já me fez cortar o sal
dos alimentos, inclusive da carne, que também cortei, mas para comer —insossa, é verdade, porém deliciosa.
Hoje, contento-me em gozar com o sal dos outros. Pois bem. Insatisfeito, fui
buscar a pesquisa completa —que me chegou ao
conhecimento através da Samantha—,
e eis que descubro, para a minha felicidade, que não sou tão burro assim. Além
dos itens citados acima, descobri que ser o filho mais velho também contribui
para a inteligência. Tudo bem que ser o primogênito está mais para mérito dos
meus pais do que meu, afinal eu não pedi para nascer primeiro... Ah, mas tá valendo.
Outro quesito que contribui para elevar o QI, segundo a revista, é ficar de mau
humor, o que me faz voltar cinco casas no jogo do sabido. Por isso, estou
pensando seriamente em ficar sério. Portanto, se você me vir ranzinza pelos
cantos, saiba: não é nada contra você. Trata-se apenas de uma questão de
inteligência. Ou não. De repente, prefiro ser um burro feliz.
Papo-cabeça
O meu juízo
deve ser um prato extremamente apetitoso e disputado —algo como a galinhada do
Alex Atala em dia de Virada Cultural—, dada a grande quantidade de pessoas que
insistem em comê-lo. Até entendo quando dizem que tenho o juízo de pinto, mas
daí até a transformação em galinácea é um processo que dá pena. Não da galinha,
mas do meu juízo, que de vez em quando insiste em cantar de galo. Quero deixar
claro: independente de tudo, quem manda na minha cabeça sou eu. Meu juízo é
livre, e exerço sobre ele uma espécie de indie gestão. Ainda se atreve a
comê-lo? Pense bem, porque de vez em quando eu penso mal. Você pode até comer
um tico do meu Teco, mas vou logo avisando: tenho pensamentos podres. Insiste a
minha massa em ser fálica. Por isso, cuidado ao tentar ciscar no meu terreiro. E
por que esse papo agora? Porque dou valor ao meu juízo, principalmente porque
não costumo fazer juízo de valor de ninguém. E porque decidi pôr tudo em
pratos limpos, dar asas à imaginação, sem outdoor nem piedade. Vou logo
avisando que desde o princípio, eu espero pelo juízo final. E ele se passa em
Alagoas, como no filme “A fuga das balinhas”, quando alguém bate no peito e
solta o grito, se achando o rei do galinheiro: “Porra, que a polícia vem aí”.
A grande virada
Não,
eu não ganhei a Mega da Virada. E o que isso significa? Que vou ter de
continuar me virando para sobreviver. Mas o importante é remar sem deixar o
barco virar, porque pode ser que ele vire, também pode ser que não, como diz o
Lulu — o cantor, não o aplicativo. Porque nessa vida, cada um se vira como
pode, seja nos 30 ou nos quarenta e cinco do segundo tempo. Por muito tempo,
por exemplo, o Ney Matogrosso se virou com “O Vira”; os Mamonas Assassinas, com
o “Vira-Vira”; o Fluminense, de virar a mesa; e há ainda quem sobreviva de “vira-vira-vira-virou...”.
O que é normal, afinal tem até aeroporto que Viracopos. Eu mesmo passei a
virada virando algumas latinhas. Mas decidi tirar o pé do acelerador, porque
este ano quero dirigir a minha vida. E vamos combinar: bebida e direção
descombinam. Dirigir os próprios rumos é o primeiro passo para se livrar do complexo
de vira-latas cantado por Nelson Rodrigues. Portanto, 2014 ser o ano do vira: virar
a cara para o que não convém; virar a mesa quando necessário; virar bicho para
defender os meus. O resto é com o futuro que virá.
Martinho da Vila e as meninas do Mossoró
Martinho da Vila tinha acabado de
cantar a última música do show “Terreiro, Sala e Salão” e descansava no camarim
do Teatro Deodoro – tomando uma água para se recompor do suor deixado no palco
– enquanto aguardava a chegada fortuita de algum fã afoito por cumprimentos.
Era dezembro de 1979 e, apesar da brisa noturna, fazia calor em Maceió. Mesmo
assim, boa parte da sociedade alagoana fizera questão de ir à apresentação –
boa parte vestindo terno, o que contribuía para aumentar a sensação térmica. Em
turnê pelo Nordeste, o artista divulgava o LP lançado no início daquele ano
pela BMG do Brasil. Muito elogiado pela crítica, o disco trazia músicas como
“Deixa a Fumaça Entrar”, “Eterna Paz” e “Embalo da Vila”, além de um pot-pourri de
marchinhas carnavalescas que iam de “Cidade Maravilhosa” a “O Teu Cabelo não
Nega”. Nos corredores do teatro ainda ecoavam os versos “Vai com Deus, vai/ Que
lá fora o sereno cai/ Vai com São Benedito...”, presentes em “Saideira”, quando
um homem de paletó e chapéu impecáveis entrou no ambiente em que estava
Martinho da Vila. “Vinha acompanhado de uma moça muito bonita que ele dizia ser
sua filha”, relembraria o artista, muitos anos depois. Ele reconheceu a cópia
de “Terreiro, Sala e Salão” que a moça segurava em uma das mãos, a outra entrelaçada
no braço do homem de terno. “Ela quer um autógrafo”, disse o homem, depois de
se apresentar: “Benedito”. “Como o São Benedito de ‘Saideira’?”, brincou
Martinho. “Não. Benedito Mossoró, seu criado”. O cantor cumprimentou os dois.
Pegou o LP das mãos da moça, assinou algo que ele não se lembra e o devolveu.
“Pai” e “filha” foram embora, dando as costas para um Martinho impressionado
com a elegância de ambos. Curioso, quis saber do produtor local do espetáculo
de quem se tratava. “Fiquei sabendo que ele era proprietário de uma casa
de tolerância frequentada por políticos e gente da alta sociedade alagoana e
por isso era tolerada pela polícia e pelos governantes”, relembra Martinho, que
também ficou sabendo que a moça que acompanhara Benedito Mossoró no camarim era
uma das moças que ele empresava, “para não dizer caftinava”, nas palavras
do próprio cantor. “Quase todas as suas pupilas eram moças expulsas de suas
casas pelos pais, por estarem se relacionando sexualmente com alguém sem
intenção de casar, e acolhidas pelo Mossoró, que as chamava de filhas”,
continuou Martinho da Vila, versado na biografia do alagoano. “O Martinho
frequentava essa ‘casa de massagem’?, quis saber Lídia Costa, a empresária
dele, quando liguei para uma entrevista. “Que Martinho safadinho!”, brincou. Se
ele conheceu as meninas do Mossoró? Bonachão, o cantor nega. Mas fez uma grande
homenagem ao homem de terno e chapéu em “Só em Maceió”, gravada em 1981, no LP
“Sentimentos”:
“Só em Maceió
Só em Maceió
É que se pode vadiar
Com as meninas de Mossoró
Com as meninas de Mossoró...”
Só em Maceió
É que se pode vadiar
Com as meninas de Mossoró
Com as meninas de Mossoró...”
A princesa que fiz coroar
Você
descobre que sua filha cresceu quando pergunta o que ela quer ganhar no Dia das
Crianças e ela responde: “uma assinatura da Capricho”. É nessa hora que você
passa em revista os momentos vividos por ela e descobre que tudo é página
virada. Que, caprichosamente, o tempo passa, e o que ficou para trás é como aquele
exemplar velho de uma edição que você folheia no consultório, mais interessado
nas imagens bonitas do que nas notícias que julga desinteressantes. Então você se
pega pensando nas várias fases da vida de sua filha, e uma série de imagens vai
se formando em sua mente. Imagens tão lindas que parecem tratadas com Photoshop
– se no cérebro existisse um. Lembra-se da primeira boneca que lhe deu de
presente e que ela mantém até hoje, com um cuidado de mãe zelosa; dos primeiros
passos; das brincadeiras repetidas que a faziam rir etc. E vai se dando conta de que ela começa a trocar o Batom Garoto com que lambuzava a boca pelo batom com
que delineia os lábios – ah, garota! Você tenta maquiar a realidade, mas a sua
filha se maquia bem melhor, fazendo com que a realidade se lhe apresente
chorosa, borrando o rímel e lhe dizendo que nem tudo tem a perfeição dos
anúncios da H.Stern. Que o bom mesmo é você começar a se resignar como as
usuárias de Jequiti. E que é burrice querer que o tempo não passe, porque ele
vai passar rápido como um jornal de ontem. Então você fica feliz por estar
acompanhando o crescimento da sua filha e se sente realizado por cada fase
belíssima da vida dela. E se dá conta, com um sorriso bobo no rosto, que o
melhor ainda está por vi. Então você se vê pegando o telefone, discando um
número e ouvindo do outro lado da linha: “Editora Abril, em que posso ajudar?”.
E você diz que quer fazer uma assinatura da Capricho. “É para o senhor ou para
presente?”, quer saber a moça. Você pensa por uns segundos, fita o vazio e
responde: “Para presente e para o futuro”. Porque o passado está guardado na
mente como um tesouro cujo mapa está desenhado no coração.
Fé
Se minha vontade tivesse direito
Eu estaria agora sob o sol
Com os pés na areia da praia
Catando conchinhas.
Porém o deus das conchinhas
Tem mais vontade que eu
E prefere deixá-las na areia
Descatadamente.
O Sorriso da Isa
Os
dias mais felizes da minha vida são os dias de sábado. Não é porque eu não
trabalho. Não é porque eu posso dormir até tarde. Não é porque é dia de
preguiça. Não. Os dias mais felizes da minha vida são os sábados em que vou buscar
a minha filha para passar o fim de semana comigo. Nesses dias esqueço que chego
do jornal às 2 horas da manhã, fechando a edição de domingo, e que descansar seria
um pedido incondicional do corpo. Porém, estar com a Isa é um pedido
incondicional da alma, e o corpo entende. Porque não há cansaço que não vá
embora depois de se aninhar nos braços da minha filha. E porque um sorriso dela
é suficiente para irradiar brilho em dias turvos. Como na música Molly Smiles,
que ainda hoje – passados tantos anos depois de ter visto o filme com ela – eu canto,
caprichosamente trocando “Molly” por “Isa”. “When the days
have gone grey/ Nothing’s wrong when Isa smiles”. Inevitável dizer que a hora mais triste é
a da partida, quando tenho que deixá-la. Nesse momento, volto para casa
colhendo lembranças dela pelo caminho, rememorando as histórias dos dias em que
passamos juntos – uma espécie de conforto para os dias de ausência. Tudo isso
se junta aos objetos que ela acaba esquecendo pela casa. (Não sei se já falei, mas moro
numa casa minúscula, mas suficientemente grande para abrigar todas as vidas que
a minha filha deixa espalhadas quando vai embora). E durante a semana, além dos
telefonemas constantes, vou catando pedacinhos de Isa em bancas de jornal,
comprando as revistas e livros que ela gosta. Então me lembro do sorriso que
ela me lança quando ganha algo. E meu dia se ilumina. Porque nada está errado
quando a Isa sorri.
A arte de equilibrar palavras
Está no Aurélio. Diabolô é
um “brinquedo que consiste em aparar num cordel estirado, atado pelas pontas a
duas varas, uma espécie de carretel com o centro mais fino que o resto, que se
atira no ar”. Vendo assim,até parece
fácil fazer firulas com o instrumento. Quem já tentou, no entanto, sabe que não
é verdade, e que nem sempre é possível dominar o brinquedo. Pois bem. Escrever
é como tentar equilibrar a palavra (carretel) num barbante estirado. É bem
sucedido quem além de conseguir o equilíbrio, mostrar desenvoltura no
malabarismo. É exatamente isso o que
consegue Nilton Resende em seu novo livro – não por acaso batizado de
“Diabolô”. Ao longo de seus nove contos, o escritor conduz a palavra sem
deixá-la cair, mostrando que domínio literário é brinquedo em suas mãos. A
literatura de Nilton Resende se atira no ar como o carretel do diabolô, e
escorre com languidezpela linha estirada do papel. O malabarismo do brinquedo
infantil é “metaforicamente” representado com frases bem construídas, como
esta, de “A ceia”, o conto que abre o livro com voraz apetite literário: “Mordo
e sinto mastigar o velho, as migalhas saindo pelos cantos como se uns dedos
tentassem escapar”.E há frases que causam incômodo pela beleza que chega na
hora errada: “Diz isso e dá uma tossida, engasgada no riso por causa da dança
que o homem faz agora...”. Inevitável a sensação de desconforto do engasgar-se
sorrindo descrito assim, de forma poética. Nilton Resende sabe o que
fazer com diabolô. Apresenta-se ao leitor e vai conduzindo seu brinquedo
literário e nos surpreendendo com movimentos precisos e, por sê-los, grandes. “O
mamoeiro macho não dá frutos, mas apenas flores que prometem tornarem-se
mamões, sendo apenas flores que não vingam, e sequer servem a que sejam
cheiradas, tão sem perfume”, diz ele em “Ofício”, sem firulas, porque ele sabe
muito bem como dominar o brinquedo. Inevitável perceber que o escritor bebe da
palavra de Hilda Hilst – a ela é dedicado o livro. Mas há mais do que Hilst
em “Diabolô”. “Casaram-se numa quinta-feira”, por exemplo, mantém a mesma
estrutura narrativa de “A Galinha Degolada”, do excelente contista uruguaio
Horácio Quiroga, com sua narrativa levemente angustiante e – por que não? –
bela.Ganha o leitor, que tem em mãos um conto para ser lido e relido. Como o é
todo o livro: um diabolô que a gente brinca, guarda-o e torna a lançar mão para
continuar se deliciando com a brincadeira.
Livro: “Diabolô” (contos);115
páginas, Edufal.
Autor: Nilton Resende
E aí, comeu "Febre do Rato"?
Eu tenho pena do cinema
brasileiro que chega ao povo. Melhor: tenho pena do povo, não do cinema. Nossa
arte cinematográfica vive de extremos: os produtores nacionais, abastados
senhores gordos trancados em salas decoradas com obras de arte apostam todas as
fichas em idiotices como “E Aí, Comeu?” e bombardeiam o filme em mais de 200
salas país a fora; enquanto isso, autores sérios têm que captar recursos, bater
de porta em porta – ah, não conseguirão chegar à porta do produtor abastado e
gordo porque a secretária gostosa dirá que ele está em reunião – para fazer com
que seu filme seja distribuído em pelo menos uma dúzia de salas, quando muito. A
desculpa? Sua obra não é comercial, óbvio. Os produtores abastados e gordos
protegidos por uma secretária gostosa dirão que o povo quer pão e circo. E aí
enfiam indigestos “E Aí, Comeu?” goela abaixo do público, que engole sem
questionar o texto preconceituoso, machista e dominador presente em grande parte
das piadas em que há sempre alguém se dando mal – e não é o produtor, mas quem
vai assistir. Neste sábado, fui ver “Febre do Rato”, o novo filme do
pernambucano Cláudio Assis, que foi exibido no Corujão do Cine Sesi. O filme
fala por si: ganhou oito prêmios no extinto Festival de Paulínia, arrebatou
troféus no Cine Ceará e vem conquistando a simpatia de crítico por aí. Mas isso
é o de menos. O cinema de Cláudio Assis é verdadeiro e incomoda. Incomoda o mainstream
e incomoda o espectador vazio, que
prefere as piadas preconceituosas porque é uma excelente oportunidade de
reproduzi-las na repartição, no dia seguinte, e se sair como o engraçadinho do
trabalho. Goste ou não goste dos filmes do diretor de “Amarelo Manga”, nunca se
sairá do cinema da mesma maneira que se entrou. Cláudio Assis faz cinema de
verdade. O próprio diretor é verdadeiro e não tem medo de defender seu ponto de
vista. “O cara tem a oportunidade de filmar a vida extraordinária de Che
Guevara e prefere registrá-lo passeando de motocicleta!?”, tascou ele,
referindo-se a Walter Salles e seu “Diários de Motocicleta”, neste sábado, 04,
depois de seu filme ser exibido no Corujão do Cine Sesi (quem perdeu a conversa
com o diretor, terá nova oportunidade hoje, às 20h, quando o filme será exibido
mais uma vez). Mas se você é daqueles que prefere continuar abrindo a goela
para as “superproduções” nacionais, não vá. Certamente, o gosto de “Febre do
Rato” não lhe será palatável. Aproveite mais uma sessão de “E aí, Comeu?”, de
fácil (in)digestão. A diferença é que o cinema de Cláudio Assis não é
para comer, mas para ficar ruminando por muito tempo.
Terra Cheia
Veja que felicidade
A primeira vez que o homem pisou na Lua
A Terra estava nascendo no Mar
Da Tranquilidade.