E aí, comeu "Febre do Rato"?


Eu tenho pena do cinema brasileiro que chega ao povo. Melhor: tenho pena do povo, não do cinema. Nossa arte cinematográfica vive de extremos: os produtores nacionais, abastados senhores gordos trancados em salas decoradas com obras de arte apostam todas as fichas em idiotices como “E Aí, Comeu?” e bombardeiam o filme em mais de 200 salas país a fora; enquanto isso, autores sérios têm que captar recursos, bater de porta em porta – ah, não conseguirão chegar à porta do produtor abastado e gordo porque a secretária gostosa dirá que ele está em reunião – para fazer com que seu filme seja distribuído em pelo menos uma dúzia de salas, quando muito. A desculpa? Sua obra não é comercial, óbvio. Os produtores abastados e gordos protegidos por uma secretária gostosa dirão que o povo quer pão e circo. E aí enfiam indigestos “E Aí, Comeu?” goela abaixo do público, que engole sem questionar o texto preconceituoso, machista e dominador presente em grande parte das piadas em que há sempre alguém se dando mal – e não é o produtor, mas quem vai assistir. Neste sábado, fui ver “Febre do Rato”, o novo filme do pernambucano Cláudio Assis, que foi exibido no Corujão do Cine Sesi. O filme fala por si: ganhou oito prêmios no extinto Festival de Paulínia, arrebatou troféus no Cine Ceará e vem conquistando a simpatia de crítico por aí. Mas isso é o de menos. O cinema de Cláudio Assis é verdadeiro e incomoda. Incomoda o mainstream e incomoda o espectador vazio, que prefere as piadas preconceituosas porque é uma excelente oportunidade de reproduzi-las na repartição, no dia seguinte, e se sair como o engraçadinho do trabalho. Goste ou não goste dos filmes do diretor de “Amarelo Manga”, nunca se sairá do cinema da mesma maneira que se entrou. Cláudio Assis faz cinema de verdade. O próprio diretor é verdadeiro e não tem medo de defender seu ponto de vista. “O cara tem a oportunidade de filmar a vida extraordinária de Che Guevara e prefere registrá-lo passeando de motocicleta!?”, tascou ele, referindo-se a Walter Salles e seu “Diários de Motocicleta”, neste sábado, 04, depois de seu filme ser exibido no Corujão do Cine Sesi (quem perdeu a conversa com o diretor, terá nova oportunidade hoje, às 20h, quando o filme será exibido mais uma vez). Mas se você é daqueles que prefere continuar abrindo a goela para as “superproduções” nacionais, não vá. Certamente, o gosto de “Febre do Rato” não lhe será palatável. Aproveite mais uma sessão de “E aí, Comeu?”, de fácil (in)digestão. A diferença é que o cinema de Cláudio Assis não é para comer, mas para ficar ruminando por muito tempo.

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    # by Camila - 4:05 PM

    adorei toda a crítica! o cinema brasileiro é muito rico! basta ser abraçada as propostas certas e parar de enfiar esses filmes "água com açúcar", machistas e ridículos. "E aí, comeu?" ainda conseguiu me arrancar gargalhadas quando deixei o senso crítico de lado... Agora "Cilada.com" e "Billi Pig" de José Eduardo Belmonte só me fizeram raiva! “Diários de Motocicleta” me fez indagar zilhões de vezes como uma pessoa pega uma figura impactante e intensa como Che e opta por um filme superficial, vago. O documentário de Raul foi outra obra inquietante... mas pergunta em quantas salas passou!?! Cláudio Assis é autêntico e destemido demais para cair na graça do dito "cinema brasileiro". Sem esquecer de Irandhir, que como sempre, detonou!

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    # by Luiz André - 11:47 AM

    Caríssimo Nealdo,

    Não vi Febre do Rato, como de resto não tenho visto quase nenhum filme nestes últimos tempos, mas concordo inteiramente com você em sua análise (maneira de dizer, pois eu sei que você não se propôs a analisar coisa nenhuma) sobre o atual cinema brasileiro. Eu já considerava o nosso cinema pobre, com poucas e honrosas exceções, mas esse E aí, comeu? – que não assisti e que não pretendo assistir, e que só pelo título (de longe um dos mais grosseiros e vulgares que já vi) mostra o seu “valor” – deve ter estabelecido um novo marco (negativo, claro) na nossa escala de baixeza cultural. Pois bem. Quando ouvi falar que tinham lançado um filme nacional com o título de E aí, comeu?, pensei imediatamente que tínhamos voltado à época das pornochanchadas. Pensei inclusive que deve haver quem afirme que a proposta é esta mesmo: uma pornochanchada light, bem-humorada e moderninha, como se as nossas antigas pornochanchadas tivessem legado ao cinema algum valor estético ou cultural que merecesse ser revisitado, ainda que de brincadeira. Mas eis o que eu queria dizer, meu caro Nealdo: receio que esse E aí, comeu? é bem a nossa cara, infelizmente. A gente é isso mesmo: essa grosseria, essa jactância, essa calhordice. A gente admira tudo isso. Não me surpreende (mas me entristece) que muitas pessoas reconhecidamente inteligentes – mulheres incluídas – tenham ido ver o filme e tenham gostado e tenham comentado, risonhas, coisas do tipo: “É desse jeito mesmo, a gente é desse jeito mesmo!” É pena que a gente se reconheça, que a gente ria, que a gente acolha com satisfação esse nosso traço tão perverso que é a canalhice, a vileza e o machismo, e que o transforme (e com que naturalidade!) nessa coisa tão “legal” e socialmente aceita, e mesmo valorizada, que é o chamado jeitinho brasileiro, também traduzido, a depender das circunstâncias, pelas expressões “malandragem brasileira” e “picardia brasileira”. Para mim não há diferença entre o cara que diz “E aí, comeu?” e o cara que estaciona na vaga dos idosos, e o que joga lixo na rua, e o que fura fila, e o que ultrapassa pelo acostamento – e o que, numa palavra, sempre tenta levar a melhor. Levar a melhor é o nosso lema – nos negócios, no sexo, em qualquer circunstância. Desculpe o desabafo, meu amigo. Era pra ter comentado o teu post, não era? Terminei fazendo sociologia de quinta categoria...