Diário de Borda em... O Anjo Exterminador

Quando seu Armando Pinto entrou na pizzaria guiado pela sobrinha, julguei estar morto e vendo um anjo devolvê-lo à vida. Seu Armando, o segurança cego da Ex-Fome Ado, cultiva manias estranhas. Tem uma arma a quem chama de Grosso Calibre. “Não tem um grosso que eu não deixe calibrado”, justifica ele. Por isso, quando a mulher apareceu trazendo-o pelo braço, achei que ele tinha ido ao céu verificar as almas enviadas por seu gatilho. E de quebra trouxe um ente celestial. “Ela é meus olhos aqui na Terra”, justificou-se ao me apresentar a moça. “Seus olhos são lindos, seu Armando”, pensei em dizer, se as palavras não me tivessem fugido todas, tímidas diante de tanta beleza. Só não perdi a cabeça porque estava de capacete. Mas perdi o capacete, ao tirá-lo da cabeça. Seu Armando chama a sobrinha de Anjo Ester. Minador do Negrão é a cidade onde ela nasceu. “Uma mulher dessas, mina a dor do negão”, pensei novamente. Mas dessa vez devo ter falado, porque seu Armando abriu os olhos e me pôs uma cara feia. Ele é cego, mas não é surdo. O segurança da Ex-Fome Ado me contou depois que ela chegou a liderar um movimento para mudar o nome do município para Minador do Afrodescendentão.  Dizia que era politicamente incorreta essa história de negrão, e os defensores das minorias não tardariam a levantar a causa e exigir a mudança. Tentou colher assinatura para um abaixo-assinado, mas os que assinaram estavam abaixo do número exigido. Frustrada, decidiu se mudar para a capital, onde manteria a paz interior. Ester tinha íris de um azul tão profundo que as meninas-dos-olhos pareciam nadar, imaginando-se no oceano. “Pacífico”, eu diria, em conflito com aquele olhar. Quando ela chorava, dizia-se que era o mar que estava de ressaca. Seu tio falava que ela era tão bonita que a palavra “beleza”, no dicionário, vinha acompanhada de uma foto sua. Sem nenhuma descrição. “Uma imagem vale mais do que humilde palavra”, filosofava seu Armando, arranjando outro significado para “um mil de palavras”. Com aqueles olhos, não foi difícil arrumar trabalho na cidade grande. Infiltrou-se no governo, que arranjou uma função na segurança pública do Estado como Agente de Convencimento. A primeira pessoa a quem Ester teve de convencer – usando o poder do estado em vantagem pessoal, no caso, para o tio – foi o dono da Ex-Fome Ado. Não foi difícil persuadi-lo a contratar um cego como segurança. “Deus caprichou nos olhos da sobrinha. Seu Armando não tem culpa”, disse o empresário, antes de assinar sua carteira de trabalho. Mais trabalhoso – mas não necessariamente difícil – era desempenhar a função para a qual foi contratada: convencer inocentes a assumirem crimes de grande repercussão no Estado, quando a opinião pública botava o governo contra a parede e era preciso mostrar ações. Em pouco tempo, Ester convencia um indigente a assumir o crime, prometendo regalias na prisão e até foto em jornal de grande circulação. Dizia isso e depois piscava para a vítima. E uma piscada dela fazia o mais pacífico dos mortais cometer um oceano de crimes. Nunca pegou em arma, mas fuzilava um com os olhos. Principalmente nas entrevistas coletivas da cúpula de segurança, quando se fazia presente para ter certeza de que “o assassino” confessaria o crime.  Depois dava um tchauzinho discreto para o novo “psicopata” e voltava a piscar, matando o cidadão na unha - que mantinha caprichosamente pintada. “Um homem mata e morre por ela”, orgulhava-se seu Armando. E eu estava já morrendo. Mas de fome. Não sei se já falei, mas sou redator. Desempregado. Ando em itálico, assim, pendido pro lado. Os amigos dizem que é de fraqueza. Só não concordo com eles porque se eu balançar a cabeça o corpo desmorona. Antes andava ereto, parecia arranha-céu. Mas hoje vivo no inferno, e ando mais mole do que os temas de Dalí. Por isso decidi dar uma fugida da pizzaria e da visão da sobrinha do segurança, para entregar jornais velhos ao seu Francisco, que usa as páginas em que escrevo para embrulhar o pescado no dia seguinte. Os clientes dele não têm do que reclamar. Conseguem ler notícias fresquinhas de graça. Só não posso dizer o mesmo do peixe que ele vende, que exala mau cheiro. Ele diz que é culpa dos crimes que o meu jornal estampa. Lembrei disso e decidi passar a vista nas páginas policiais. E vi um acusado de crime sorrindo na fotografia. Provavelmente mais uma vítima da sobrinha do seu Armando, que enxerga o mundo pelos olhos da sobrinha...

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    # by Débora Guedes - 11:03 AM

    "Minador do Afrodescendentão" foi ótima! Morri de rir. E lembrei de um comentário do Ricardo Motta quando ele falava que a situação política de Maceió era parecia a "performance corporal do afrodescendente portador de transtornos mentais" Leia-se "Samba do croulo doido" >

    Vc é genial!
    Kkkkkkkkkkkkkkkkk