As Lagoas

Sempre que alguém tentava tirá-lo da angústia em que se encontrava, ele lembrava de uma frase de Graciliano Ramos. “Quando se quer bem a uma pessoa a presença dela conforta. Só a presença, não é necessário mais nada”, dissera, certa vez, o autor de Vidas Secas. E ele se agarrava à frase como um náufrago à possibilidade de salvação. Há semanas, não parava de pensar em Rosa, uma baiana que deixara Salvador para lavar roupa em casa de madame da zona sul carioca, no início dos anos 70, se encantara pela música que vinha do morro e decidira ser madrinha de bateria, depois de abandonar de vez as roupas. As da patroa e as dela.

Conhecera a mulata em 1975, quando a Estação Primeira de Mangueira homenageou seu conterrâneo Jorge de Lima durante o carnaval. Sem pestanejar, saiu de União dos Palmares e decidiu ajudar a Verde-e-Rosa na avenida. Professor de História de escola pública, dizia-se versado no Príncipe dos Poetas. Versado e prosado, emendava sempre que lhe questionavam.

No fundo, queria ficar famoso como os puxadores de samba-enredo. Acabou puxando o carro abre-alas, junto com outros desconhecidos. Mais tarde, diria que sua intenção era apenas dar uma mãozinha à escola. E mostrava um recorte do Jornal do Brasil em que aparecia o carro e – em último plano – o que ele jura serem suas mãos empurrado a gigantesca alegoria sobre rodas. A fotografia em branco e preto dificulta o reconhecimento, justificava.

Entre uma parada e outra, dava uma olhada em volta, orgulhoso por estar empurrando Jorge de Lima para a glória. Num desses intervalos, Rosa desabrochou para ele que nem pétalas que encontram o tão esperado beija-flor depois de passar a noite toda se banhando em orvalho. Era uma verdadeira fada-madrinha. De bateria, vá lá, mas tinha também seus encantos.

Quando a viu, seu coração bateu atravessado. Naquele ano, a Estação Primeira deixaria escapar o título para a Acadêmicos do Salgueiro, mas ele conquistaria o amor da mulata depois de recitar Essa Nega Fulô pelas ruas do Rio. Foram morar juntos no morro, num barracão de zinco, sem telhado, sem pintura, um horror, que só ficava bonito em letra de samba-canção. De samba e num coração cheio de amor, atalhava.

Passou a ser conhecido na comunidade como Professor. À noite, boa parte dos moradores ia ouvi-lo contar histórias sob a luz do lampião, que ele acendia declamando Jorge de Lima, para encanto de Rosa, sempre vestida de verde. Alagoas? Minha terra tem história, orgulhava-se antes de puxar prosa. Conta aquela do Descobrimento, pedia Dona Neuma. E ele tomava as rédeas da palavra. Pois sim, foram alagoanas as primeiras terras avistadas por Cabral, a 10 graus de latitude austral. Ninguém contestava.

Até Cartola tirava o chapéu para o Professor. Repete aquela do Bispo Sardinha, pedia o autor de As Rosas Não Falam. E ele atendia, não sem antes chamar a atenção do compositor para o fato de não entender patavina de flores. A minha Rosa fala pelos cotovelos, argumentava. E narrava a história do bispo que fora devorado pelos índios Caetés, pros lados de Coruripe, quando a nau Nossa Senhora da Ajuda naufragou. Já era o sardinha, que tinha nome de peixe, mas não andava numa boa maré.

Sucedia-se o desfile de personagens. Calabar era motivo de divergência entre a platéia do contador de histórias. Herói ou traidor? Ele botava panos quentes na discussão. Emendava com outros alagoanos ilustres: Aurélio Buarque de Holanda, a quem chamava de O Decifrador de Palavras, Nise da Silveira, Deodoro da Fonseca...

Graciliano Ramos? Não era econômico apenas nas palavras, não. Há quem diga que não pagava uma rodada de pinga no Café Central, quando se encontrava com o Zé Lins, Rachel de Queiroz e outros letrados. Jurava-se que os únicos dedos que se lhe movimentavam eram o polegar e indicador, mesmo assim para segurar a pena, na hora de escrever. Não tinha santo que o fizesse abrir a mão. Nem santo nem orixá, segundo Jorge Amado, outro a freqüentar o café alagoano.
Dona Zica, que ia atrás do marido entretido com as histórias, ficava boquiaberta com os enredos do Professor. Isso dá samba, dizia. Com o tempo, outras agremiações iriam lhe pedir consultoria quando o assunto era Alagoas. Minha terra tem história, repetia.

De tanto repetir, Rosa se mandou para Maceió, deixando o Rio numa manhã de janeiro. Antes de partir, disse-lhe que queria conhecer o berço de Zumbi dos Palmares. Ele não estava preocupado com berço, mas com as camas em que ela poderia se deitar. Ficou macambúzio. Deu pra chorar e se fechar em si. Não saia mais da cama. Mas adoeceu mesmo quando a viu, anos depois, num clipe do Djavan, toda lasciva, entre outras alagoanas, cantarolando versos de samba:

“Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
Bandida, cadê minha estrela guia?
Vadia, me esquece na noite escura
Mas jura
Me jura
Que um dia volta pra casa”...