Para um amigo eterno
"Vou para a terra do ‘Volto Logo’". Fiquei surpreso com a resposta que a Isa dera quando eu quis saber para onde ela ia, saindo às pressas rua afora assim, como quem diz: "esquente não, coroa, volto em dois minutos". Não sei porque, a frase voltou à minha mente quando meu irmão me ligou ontem, dizendo que o Moisés havia morrido. Passei o dia completamente triste, com dificuldade de me concentrar no trabalho. E imediatamente me lembrei do amigo que conheci aos 17 anos, quando fui procurar trabalho em seu estúdio fotográfico, na cidade de Arapiraca. Profissional exemplar, executava cada tarefa com um amor incondicional, o que me fascinou de imediato. Em meu primeiro dia no novo emprego, fui encaminhado por ele ao estúdio recém-inaugurado – um espaço de 400 metros quadrados reservado a todo tipo de fotografia. Por azar – ou sorte – estava sozinho quando uma dúzia de sertanejos chegou ao estúdio para ser fotografada. O pai queria mandar uma imagem da família para o filho que estava em São Paulo, trabalhando na construção civil. Eu não entendia nada de fotografia, mas senti o desespero do homem – o rosto envelhecido, quase pele e osso. "Não podemos esperar pelo fotógrafo. Nosso carro parte daqui a dez minutos", disse-me com pesar. Comovido, fui tentar fotografar a família. Preparei o estúdio, apanhei a Nikon e apertei o disparador. Alegre, o homem agradeceu em nome da mulher e dos 10 filhos. À tarde, quando fui ao laboratório apanhar a fotografia, flagrei todos rindo do "dez-por-quinze" que passava de mão em mão. Um olhava a foto, ria e passava para outro, que repetia o processo. Até que o Moisés chegou. Todos pararam de rir, não a tempo de ele perceber. Severo – mas extremamente justo –, ele quis saber o que estava acontecendo. Com olhar de medo, um dos funcionários lhe passou o papel. Ele examinou a fotografia, olhou pra mim, voltou a olhar a imagem e veio até onde eu estava. "Foi você que fez isso?". Depois de passar a vista na foto (pensei: "tô frito"), olhei nos olhos dele e respondi que sim, pronto para arrumar outro emprego. Ele deu uma risada, voltou a olhar a fotografia e sapecou: "Você é ousado!". Fiquei sem entender. "Seria ousadia fotografar 12 pessoas num estúdio para lá de moderno e só aparecer a sombrinha do flash?". Quer dizer, aparecia também a cabecinha do filho mais novo que, percebendo estar fora de quadro, esticou a cabeça para aparecer na foto. "E isso é bom ou ruim?", quis saber. "Para a família que você fotografou, é péssimo. Afinal, ela vai guardar de recordação apenas a sombrinha. Mas para você é ótimo!" E eu quis saber porque. Ele aproveitou para dar uma lição de moral nos que riram de mim. "Ele poderia muito bem ter dito que não tinha ninguém para fotografar, mas se arriscou, entenderam? E a vida é isso: correr riscos". Depois dessa primeira aula, me tomou como discípulo. "Eu tenho idade para ser seu pai", dizia quando tinha raiva. Não, não tinha idade para ser meu pai. Tinha a idade para ser meu amigo, como o foi ao longo de todo esse tempo. A diferença de anos entre nós – quase o dobro – só me deu conforto de lhe contar das minhas fraquezas e me refugiar na sua experiência. Ontem simplesmente ele morreu, talvez para me passar mais uma de suas lições de vida. Porque a nossa existência tem disso: de fazer da morte também uma lição de vida. Há anos morava em Arapiraca, mas a família preferiu – talvez por desejo seu – sepultá-lo no Cemitério de Ipioca, distrito onde nasceu, localizado no litoral norte de Maceió. Do local, tem-se uma visão do Paraíso: pelo dia se vislumbra o verde do oceano, uma cor inigualável que acalenta os olhos e apascenta a alma; à noite, o mar de estrelas faz com que a gente se sinta muito perto de Deus. (Se houvesse tempo, eu lhe teria dito que não precisava necessariamente estar morto para contemplar a vista). Não pude ir ao sepultamento. Mas fiquei me lembrando das muitas lições que aprendi com ele. Qualquer dia, quando tiver oportunidade, lhe direi o quanto todas foram muito importante. Por ora – e se ele pudesse me ouvir – diria apenas uma frase: você é ousado, meu amigo. Vá se juntar às estrelas...
This entry was posted on 19 de julho de 2007 at 4:42 PM. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.
# by Anônimo - 6:51 PM
Puxa, Nealdo, também fiquei triste ao saber, através de sua crônica, da morte de Moisés. Eu não o conhecia tanto quanto você, mas me lembro bem dele, que era muito amigo de uns vizinhos meus no tempo em que morei em Arapiraca. Aliás, há um fato que de certa forma nos liga. Tempos depois que minha família deixou Arapiraca, foi ele quem comprou nossa casa e chegou a nos visitar no interior.
Aos que passam pela nossa vida
Sempre que alguém querido parte, lembro-me deste texto atribuído a Saint-Exupery (não garanto a autenticidade):
Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho...
Porque cada pessoa é única para nós,
E nenhuma substitui a outra.
Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho,
Mas não vai só...
Levam um pouco de nós mesmos
E nos deixam um pouco de si mesmos.
Há os que levam muito,
Mas não há os que não levam nada.
Há os que deixam muito,
Mas não há os que não deixam nada.
Esta é a mais bela realidade da vida...
A prova tremenda de que cada
um é importante,
É que ninguém se aproxima
do outro por acaso...
Um abraço
Fábio
# by Anônimo - 7:13 PM
P,C,PQC,AÍÉF!
# by Eris Oliveira - 7:59 PM
que pena, q seu amigo seja bem vindo na constelação!
abraço
# by Anônimo - 9:38 AM
Caro Nealdo,
A lição que vc me passa, mais um vez se firma. A magia da amizade está na admiração e respeito pelo amigo.
Quem dera nós, tívessemos a sorte de começarmos nossa carreira com um "Moisés". Muito bonito os seus dizeres. Parabéns.
E feliz dia do amigo para vc. :)
# by Carlos Nealdo - 10:10 AM
Meus amigos,
Muito obrigado pelas palavras de carinho.
Fábio, valeu pelo texto. Independente da autoria, traz verdades belas.
Anônima, P,C,PQP,AÍÉF também foram as palavras que eu disse quando meu irmão me ligou informando da morte dele.
Tocão, grato por tudo.
Lis, mais uma vez, obrigado pela visita e pelas palavras de carinho...
Um beijo a todos!
# by Anônimo - 3:15 PM
Nel,
Gostei de muitos artigos seus. Mas esse do Moíses é tão lindo!!! Você sempre foi essa pessoa que eu vi e poucos descobriram agora, né, seu ousado? (parodiando o Moíses). Você lembra que eu disse que um dia você ia ficar famoso? O dia chegou. Menino, eu invejo (inveja do bem), esse povo talentoso que escreve lindo e vê o mundo lindo, como você e Maria Moura... São meus amigos, posso dizer! Puxa que honra! beijos!!!
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