Carinho
Morei quatro anos na Residência Universitária Alagoana – a RUA, como ainda hoje é conhecido o prédio localizado próximo à praça Visconde de Sinimbu, no Centro de Maceió. Na minha época, dividia o espaço com 82 estudantes dos mais variados cantos do mundo. Gente do Rio, Bahia, Paraná, Alagoas, África e alguns paraguaios. Legítimos. A Rua está situada num quarteirão composto pela antiga reitoria universitária e pelo extinto Centro do Estudante Universitário (CEU), onde fazíamos as festas de final de período acadêmico. "Amanhã tem festa no CEU!", gritávamos pelos corredores da RUA, ávidos como o sapo da velha fábula. Indispensável dizer que em noites de farra, regadas a garrafões de vinho e um violão – sempre tinha alguém que tocava violão – terminávamos embriagados (uma embriaguez de felicidade, já que não tínhamos dinheiro suficiente para ebriedade etílica) e cantando versos do Legião. "Eu moro na RUA e não tenho ninguém, eu moro em qualquer lugar...". Ao me formar, tive que deixar a Residência, e desde então – como em "Pais e Filhos" – "já morei em tanta casa que nem me lembro mais". A RUA é uma das poucas inesquecíveis. Fiz amizades lá que preservo nos dias atuais. De vez em quando encontro um ex-residente e sei de notícias novas. Ou nem tão novas assim, já que os encontros não acontecem todos os dias. De uns tempos pra cá, alguns que moravam na residência na minha época de estudante morreram. De acidente ou de doença. Em comum, a forma prematura como deixaram essa vida. Uns até moravam vizinho ao meu quarto. "Passou perto", pensava, à medida que sabia do falecimento deles. Imaginava também que a morte deveria passar por uma seleção para poder entrar na RUA, como acontecia com todos os residentes, que enfrentavam um lento processo de escolha antes de morar lá. Pensei nisso há dois dias, quando soube que a Impiedosa entrou no "meu quarto" e convidou o Lourenço para o Passeio Inevitável. Africano de São Tomé e Príncipe, Lourenço era respeitado por todos os residentes e profissionais da Universidade Federal de Alagoas. Na reitoria, tinha acesso, sem pedir licença, a gabinetes de reitores e pró-reitores. Era a alma da RUA: sempre alegre e pronto para acolher quem necessitasse de acolhida. Tentava resolver todos os problemas que diziam respeito à casa. Lembro que da primeira vez em que voltou ao Brasil depois de formado, visitou a RUA. Tinha vindo para um congresso internacional no Rio de Janeiro e, movido à saudade, deu um "pulo" em Maceió. Foi recebido por mim, à porta da residência. O sorriso e a simplicidade eram os mesmos; o cargo, não. De estudante, havia passado a ministro do Meio Ambiente de seu país. "Pora!", festejei com o palavrão, pronunciado como ele pronunciava, sem "dobrar" os erres. Fiquei feliz por ele. Depois que foi embora – pois tinha um monte de gente pra visitar – fiquei lembrando episódios ocorridos no tempo em que dividíamos o mesmo quarto. Num deles, entrou no gabinete da Lícia – pró-reitora Estudantil – cheio de pernas. Extremamente educado, esperou que ela terminasse o telefonema, para lhe falar:
"Estou precisando de um carinho".
Comovida, a pró-reitora deixou sua mesa e foi até ele:
"Oh, meu amigo. Venha pra eu lhe fazer um carinho..."
"Ô, pá! É um carinho de mão!" – tentou explicar um desconcertado Lourenço, querendo dizer que necessitava de algo que transportasse terra para refazer o jardim da RUA.
Cuidadoso como era com as plantas, o são-tomense deve ter ganhado um jardim inteiro aonde quer que tenha ido. E com sorte, deve estar ganhando também muito carinho de Deus, caso o Pai também não tenha entendido o seu pedido. Ou tenha.
This entry was posted on 29 de agosto de 2007 at 4:00 PM. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.
# by Anônimo - 6:20 PM
Belas palavras. E pode ter certeza que o Lourenço está recebendo muitos "carinhos" de Deus. Além do mais, não precisava entender as palavras ditas por ele. Um bom sorriso e atos gentis como se referiu no texto, dispensa qualquer entendimento.
Tenho muito orgulho de vc. :)
Bjs
Lis
# by Anônimo - 6:21 PM
Belas palavras. E pode ter certeza que o Lourenço está recebendo muitos "carinhos" de Deus. Além do mais, não precisava entender as palavras ditas por ele. Um bom sorriso e atos gentis como se referiu no texto, dispensa qualquer entendimento.
Tenho muito orgulho de vc. :)
Bjs
Lis
# by Anônimo - 2:07 PM
A RUA...
O LEGIÃO...
O VINHO...
AS FESTAS...
O LOURENÇO...
O CARINHO ("R")...
....
NEL, VOCÊ ME FEZ CHORAR.
Gésia
# by Carlos Nealdo - 3:31 PM
Lis,
Mais uma vez, obrigado pela visita ao Tapa de Humor, obrigado pelas palavras, obrigado, obrigado, obrigado!
Malheirooooooooooooossss!!!!
Minha amiga das madrugadas tribuneiras, ao lado do Valdi (o Junior) e das pipocas Bokus: valeu por tudo!
Beijos para vocês.
# by Anônimo - 1:41 PM
Eu esqueci de te contar, tomei a liberdade de xerocar esse texto e entregar para Clau, minha amiga que morou na RUA também, e pedi para afixar no mural para todo mundo poder ler. Resultado: ela diz que todo mundo amou o texto e alguns se emocionaram com ele.
Beijos. Sua amiga Malheiros
# by Anônimo - 10:37 AM
Já me acostumei a passar por aqui todos os dias, viu? Está adicionado na minha lista de favoritos. Um abração, Nealdo.
# by Anônimo - 8:41 PM
Nealdo só vc mesmo. Fantástico...
bj. Flávia Amaral
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