Além das nuvens
“Que é a vida senão uma série de loucuras inspiradas”.
George Bernard Shaw
George Bernard Shaw
Quando eu era criança, havia um senhor que costumava dormir sob um imenso umbuzeiro em frente à casa da minha avó. Passava dias e noites tocando um velho acordeom, parecia se alimentar de música. De música e de umbu, quando calhava de ter. E eu, que adorava a fruta, ficava lamentando não poder ir ao umbuzeiro, com medo do Doido da Sanfona, como ficou conhecido no povoado aquele senhor de barbas compridas e mal vestido. Quando meus pais queriam me meter medo e me botar casa adentro, ameaçavam com um “olha o Doido da Sanfona”. E antes mesmo de ouvir o som do instrumento, eu me tocava que tinha de fugir. Fugia contrariado, porque não entendia como um louco conseguia tirar melodias tão sublimes de seu instrumento. Cresci e nunca mais ouvi falar nele. Quando voltava à casa da minha avó – nas férias –, queria saber que fim tinha levado, mas confesso que sempre me preocupei mais com os umbus. A lembrança do homem só voltaria à minha mente tempos mais tarde, quando decidi fazer meu projeto de conclusão de curso. Doido por fotografia, resolvi realizar um ensaio fotográfico num hospital psiquiátrico de Maceió. Passei cerca de quatro meses indo diariamente ao lugar, para produzir as fotos de “Louco por Louco: a vida social de um doente mental”. No início, fiquei com medo. Mas depois da décima carreira e algumas quedas tentando fugir, as coisas melhoraram. Fui me acostumando com as histórias que ouvia todos os dias. Um que dizia ser extraterrestre; outro, Jesus Cristo; outro ainda, Deus. “Pronto. Estou no céu”, pensei, achando tudo diferente. Demorou para entender que o diferente ali era eu. Aproveitei que eles eram loucos – no sentido figurado – por fotografia para levar algumas imagens tiradas em dias anteriores. Alguns olhavam as fotos e riam, felizes por se reconhecer nelas; outros, porém, ficavam tristes por não se reconhecer. Depois que concluí o trabalho, começou a bater saudade de cada um deles. Até do ET, que só deixava ser fotografado apontando pro céu. E insistia pra eu tirar fotografia do Sol, que ele dizia ser a Nave-Mãe. Outro dia, tive notícias do hospital. Uma psiquiatra, coordenando um dos projetos de humanização da instituição, decidiu pedir que todos eles desenhassem algo que desejavam muito. Alguns desenharam paisagens; outros, uma casa cercada de flores. Ao se aproximar de um deles, percebeu que havia um desenho de um pequeno barco perdido num imenso espaço negro.
“O que é isso?”, ela quis saber.
“É um barquinho no mar, de noite”, respondeu.
“Ah, e para quê você quer o barco?”
“Para pisar na lua”.
“Pisar na lua!? Mas não seria melhor um foguete?”
“Não, não, doutora. A senhora não entende. Um barquinho é melhor”.
“E como você vai fazer para chegar à lua neste barquinho?”
“Ah, doutora. A senhora não entende nada. Onde é que a lua nasce?”, perguntou. E antes de ouvir a resposta, concluiu: “Eu vou ficar quietinho dentro do barquinho, esperando ela nascer...”
“O que é isso?”, ela quis saber.
“É um barquinho no mar, de noite”, respondeu.
“Ah, e para quê você quer o barco?”
“Para pisar na lua”.
“Pisar na lua!? Mas não seria melhor um foguete?”
“Não, não, doutora. A senhora não entende. Um barquinho é melhor”.
“E como você vai fazer para chegar à lua neste barquinho?”
“Ah, doutora. A senhora não entende nada. Onde é que a lua nasce?”, perguntou. E antes de ouvir a resposta, concluiu: “Eu vou ficar quietinho dentro do barquinho, esperando ela nascer...”
This entry was posted on 13 de setembro de 2007 at 12:48 PM. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.
# by Márcia - 10:47 AM
Os 'loucos' vivem num mundo surreal, um mundo só deles, mas verdadeiros dentro de suas limitações... E nós vivemos num mundo de LOUCOS!
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