Cara-de-pau
EU TENHO INVEJA DE QUEM TEM a cara-de-pau. Mas não é de qualquer um cara-de-pau, não. Eu tenho inveja do verdadeiro Cara-de-Pau, aquele que tem o rosto coberto por madeira de lei proibida pelo Ibama – quase extinta –, um terror para os cupins. Para os cupins e para os demais mortais. No fundo, eu tenho inveja de quem invade o espaço alheio, porque esta é a prova cabal de que os caras-de-pau estão por toda parte, principalmente em lugares públicos. Intriga-me, por exemplo, como o verdadeiro cara-de-pau tem coragem de chegar a um bar, com o carrão do ano, equipado com o que há de mais moderno e ensurdecedor em termos de som, descer – e geralmente desce acompanhado de amigos – ligar o CD Player na maior altura e ficar lá, sentado, ouvindo o lançamento da banda Calypso. Na maioria das vezes, fica o tempo todo calado – o barulho o impede de manter um monólogo até com o seu cérebro (vamos imaginar que ele tenha um cérebro, nem que seja de madeira). Os amigos, sorvendo goles de cerveja, limitam-se a balançar a cabeça para a direita e para a esqueça, ao compasso da música. De vez quando, um deles é despertado do torpor pelo grito da Joelma (e confesso que não sei como o Ximbinha agüenta o grito da Joelma). A esta altura, ninguém no bar consegue mais conversar, porque o cara-de-pau faz questão de atrapalhar as conversas de todas as outras mesas, com o volume ensurdecedor de seu carro. E o pior é que quando gosta de uma música, faz questão de repeti-la, para os amigos terem certeza de sua preferência. E continua o balançar de cabeças, para lá e para cá, para lá e para cá. (Numa pessoa ajuizada, a esta hora o cérebro estaria embriagado. Mas estou falando de pessoas com juízo, o que não é o caso). Tenho inveja, confesso. É preciso muita cara-de-pau para atrapalhar os outros com uma música imprestável. Por isso combinei com o meu amigo André – e a Lis também topou – de invadirmos um reduto destes – a Cara-de-paulândia – para irmos à forra. Carro equipado com o que há de melhor em termos de som, chegaremos à maneira deles: porta-malas e portas abertos para melhor reverberação do som, suspense, volume ao máximo e atacaremos de Chico Buarque:
“A minha música não é de levantar poeira
Mas pode entrar no barracão
Onde a cabrocha pendura a saia
No amanhecer da quarta-feira...”
Até então ninguém entenderá a razão de três sujeitos estarem sentados à mesa, com seus copos transbordando de Bohemia e balançando a cabeça para lá e para cá. Até que o Chico grita em surround:
“Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração...”
Nesse momento, algum fã da Calypso achará que soneto é o mesmo que cochileto e provavelmente vai querer que a gente vá dormir noutro lugar. Mas o Chico insistirá, para desespero da plebe:
“Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos...”
E os três lá, silenciosos que nem escafandrista, mal ouvindo a própria respiração. Até que, depois de ouvir todo o repertório do Chico – e se não formos expulsos antes à pedrada –, nos levantaremos com a sensação de vingança plena. Não sem antes atacarmos a saideira:
“Qualquer canção de bem
Algum mistério tem
É o grão, é o germe, é o gen...”
This entry was posted on 3 de outubro de 2007 at 12:27 PM. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.
# by Anônimo - 3:52 PM
rsssssssssssssssssssssssssssssssssssssss...
Meu querido, a essas alturas os calypsianos já teriam armado uma baita de uma guerra "gelada". Seria o maior conflito político-ideológico jamais contado nas historinhas de sala de aula. Mas ao mesmo tempo, a cara-de-pau de nós três, seria motivo de aplausos e respeito. Inclusive dos EUA e União Soviética, até da própria Calypso. Por enquanto, que os outros se embebedam com os corpos dançantes, que rezam demasiadamente para não ficarem velhos (porque já sabe, a coisa cai, ou fica deformada igual a ‘Gretchen’, com o umbigo quase no meio dos olhos hehe), nós, considerados os loucos no meio deles, estamos mais preocupados em saciar a nossa mente, nossos instintos e despoluir essa coisa que impregnou em nossas cabeças, ironicamente chamada de música.
Bjs,
Lis
# by Anônimo - 9:07 PM
Menino, vcs iriam vingar a honra de uma raça!!! pode ter certeza, tava comentando isso semana passada, e dependendo do lugar até estraga a música escutar com uma galera de cérebro de amedoim por perto.
massa!!! valeu
Ana Paula
# by Anônimo - 11:51 PM
É isso mesmo, meu querido: vamos à forra. Vamos conquistar o nosso direito a um ambiente etílico equilibrado e saudável. Seremos guerreiros sagrados, e Chico será o autor do nosso hino militar.
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