O Último Pau-de-arara

WILHELM BRUHN, UM ENGENHEIRO alemão apaixonado por corridas de cavalo, entrou para a história como o inventor da palavra Táxi. Cansado de levar cano dos donos de cabriolés que faziam o transporte de passageiros, o engenheiro decidira inventar um instrumento que medisse o valor das corridas. Criaria, assim, o taxímetro, que controlaria os valores do percurso feito pelos então veículos puxados a cavalo. Os carros que passaram a circular com o taxímetro seriam chamados de Taximeter Cab, mas a população percebeu que o nome era deveras comprido e os pilotos alemães rápidos demais – coisa que o Rubinho Barrichello só viria a descobrir muito mais tarde –, de modo que não dava tempo de pronunciar o nome Taximeter Cab porque o carro já havia passado com mais de mil. Daí, dediciu-se encurtar a palavra para Taxicab e, finalmente, para Táxi. Conta a lenda que os motoristas não ficaram muito felizes com a geringonça que tirava deles o poder de negociação. Aí, para a lenda ficar completa, a categoria teria jogado Bruhn no Tâmisa, parando depois para o observar viajar rio abaixo. Sem taxímetro, numa espécie de corrida free. Lembrei da história do engenheiro quando o taxista que me levava ao aeroporto desatou a contar seus causos. Se Bruhn é considerado o Pai dos Táxis, os taxistas são os padrastos da lenda urbana. Em se tratando de conversa fantasiosa, a categoria só perde para barbeiro – uma profissão que corre o perigo de virar lenda, tal é a escassez de profissionais no mercado. O fato é que em menos de dez minutos, o motorista ao meu lado desata um rosário de histórias que, se não trabalhasse num veículo de comunicação, eu juraria serem verdade. Seu erro é começar a questionar sobre a minha vida. Primeiro pergunta se eu estou viajando a passeio. Até aí conto a verdade. "Estou indo a trabalho". E depois de descobrir a minha profissão, quer saber o que um jornalista alagoano vai buscar em São Paulo. "Investigação pesada, meu caro", respondo, com um olhar perdido no asfalto, imaginando que mal descesse do carro, ele trataria de espalhar a lenda para outros passageiros. "Política?", questiona. "Não só política. Sexual, religiosa, bandida. Tudo junto", sapeco sem nem pensar. "Vixe, Maria! E o senhor não tem medo não?", quer saber. "Meu amigo, se tudo der certo, quem vai ficar com medo não sou eu, não. O negócio envolve gente poderosa desse estado. Gente do governo, está entendendo?". É o suficiente para ele se calar. Desço rindo do táxi, imaginando a lenda urbana que está se formando naquele momento. Ainda penso no taxista quando despacho as malas, ao mesmo tempo em que descubro que o avião está atrasado e o pátio do aeroporto abarrotado de gente. Para distrair, passo o tempo lendo as aventuras de Bibiu, o matuto-sabido protagonista de Roliúde, o ótimo livro de Homero Fonseca. As aventuras do contador de filmes me fazem esquecer do povaréu que espera avião, todos com cara de cansaço e raiva pela demasiada espera. Quando finalmente o 737 embarca, sinto-me como se estivesse viajando num pau-de-arara cheio de nordestino a caminho de São Paulo, tal é a quantidade de pessoas se espremendo entre os assentos. Por instantes, fico à espera das galinhas voando dentro da aeronave e da farofa espalhada nas poltronas, mas sou desviado dos pensamentos quando a aeromoça com sorriso de plástico me entrega uma barra de cereal e um pacote de amendoim, o 'banquete' que irá me ajudar a atravessar os mais de 2.300 quilômetros até São José dos Campos. Olho para a turbina do avião e sinto o ronco muito próximo. "Sua barriga está reclamando de fome", me alerta o passageiro sentado ao lado. "Que barra pesada", penso, antes de correr à barra de ceral, que é um alimento leve. Em Garulhos, a última escala do Boeing, percebo que o caos é maior do que o deixado no aeroporto Zumbi dos Palmares. Mal apanho as malas na esteira e sinto que a cidade fede a peixe. Um cheiro imprestável de peixe que me acompanha de Guarulhos até São José dos Campos. Como São Paulo não pode parar, imagino que o estado não teve tempo de tomar um banho, daí o mau cheiro. Deixo as malas no hotel e desço pro restaurante a fim de me vingar da aeromoça-com-sorriso-de-plástico-e-sua-barra-de-cereal-sem-graça. Porém, mal janto e já os organizadores do evento anunciam uma programação – o que me faz subir ao quarto em dois tempos. Novamente o cheiro de peixe volta a me incomodar. "Se São Paulo não está nem aí pra banho, eu estou", penso. E corro pro chuveiro. Mas o cheiro de peixe insiste em contaminar a cidade, o hotel e tudo ao meu redor. Resolvo me abstrair e corro pra mala. Descubro que ela está completamente molhada e... fedendo a peixe. Alguém no avião tinha levado peixe para São Paulo e, por uma dessas coincidências do destino, o produto ficara justamente sobre a minha mala, fazendo com que todas as minhas roupas ficassem molhada e mal cheirosas. Passaria os três dias fedendo a peixe, não fosse a organização do evento, que disponibilizaria algumas camisas. E toda vez que as usava, lembrava das minhas roupinhas e do avião pau-de-arara que me levou a civilização...

  1. gravatar

    # by Anônimo - 1:22 AM

    Acho que a civilização, essa coisa nobre, que a gente fala de boca cheia, quase usando maiúscula, não existe (Bom, talvez os franceses sejam civilizados. Pelo menos constumavam ser antigamente. Por outro lado, os franceses têm contra si a pecha de ser considerado um povo efeminado: talvez seja melhor ser rude.)

    Mas como eu dizia, esse negócio de civilização... Nova York pode ser considerada um exemplo. De incivilidade. É uma cidade de gente mal educada, quase agressiva. É linda, cheia de teatros e parques e tal e coisa. Mas os nativos! Vale a pena dar um pulo lá: a gente volta se achando o povo mais cordato do mundo.

    Dos taxistas, então, nem se fala. Aqueles lá jamais criariam qualquer lenda urbana. Quando não estão calados, ou carrancudos, ou falando com as esposas através daqueles aparelhinhos pendurados no ouvido, estão xingando os outros taxistas, ou o pedestre que atravessa na frente deles. Não gostam de histórias, anedotas ou piadas. Recusam sorrisos. Mal sabem as boas histórias (ou mentiras) que perdem.

  2. gravatar

    # by Unknown - 10:11 AM

    Oi, Carlos!

    Seu texto é um primor, uma delícia. Mas você cometeu pelo menos dois pecadilhos contra nossa língua: "excassez" (escassez) e "mal cheiro" (mau cheiro).

    Espero que não se amofine com este alerta.

  3. gravatar

    # by Carlos Nealdo - 10:35 AM

    Oi, Louise!

    Muitíssimo obrigado pela correção. Desde já, agradeço.
    Um abraço e volte sempre.

    Nealdo