A Bahia literária de Jorge Amado

O carro para diante da casa de número 33 da rua Alagoinhas, no pacato bairro do Rio Vermelho, em Salvador, e o motorista Aritama – um baiano boêmio e sorridente – pergunta: “Quem mora aí?”. Ao saber se tratar da casa onde residiu o escritor Jorge Amado, ele exclama: “Ah, o velhinho que fazia novela! Eu gostava de assistir ‘Gabriela’ na televisão”. Adquirida pelo casal Jorge e Zélia Gattai em outubro de 1961, justamente com o dinheiro dos direitos autorais do livro “Gabriela Cravo e Canela”, vendido à Metro Goldwin Mayer, a Casa do Rio Vermelho – como ficou conhecida a morada do casal de escritores – era freqüentada por figuras singulares, fascinantes e, não raro, surpreendentes. Pelo portão com motivos de pássaros e frutas criados pelo amigo e artista plástico Carybé já passaram personalidades como Moacir Werneck de Castro, Pablo Neruda, Sônia Braga, Dorival Caymmi, João Ubaldo Ribeiro e muitos outros hóspedes ilustres. Também pelo portão – guardado por um guerreiro africano – já ganharam mundo, saído da mente do escritor baiano, personagens encantadores como Vadinho (de “Dona Flor e seus Dois Maridos”), Pedro Arcanjo (“Tenda dos Milagres”) e Tereza Batista. Depois da morte do escritor, em agosto de 2001, a família decidiu fechar a casa onde, sob uma frondosa mangueira no jardim, repousam as suas cinzas. A ideia da família é transformar a residência em memorial.
Mas a memória de Jorge Amado não está restrita à casa do Rio Vermelho. Ela vai muito além. Sua vasta obra literária teve início, por exemplo, quando o escritor – ainda estudante – residia num sobrado na Ladeira do Pelourinho. “Visto da rua o prédio não parecia tão grande. Ninguém daria nada por ele. É verdade que se viam as filas de janelas até o quarto andar. Talvez fosse a tinta desbotada que tirasse a impressão de enormidade”, descreve ele em “Suor”, seu terceiro livro, escrito em 1928. Hoje, o prédio que serviu de residência do então estudante – e que abrigou os personagens descritos por ele – rende-lhe uma homenagem com uma placa afixada à entrada, em que se lê: “Neste prédio, o ‘68’ da Ladeira do Pelourinho viveram os personagens de Suor”. A Bahia é um verdadeiro cenário para as personagens criadas por Jorge Amado. Dos velhos trapiches próximos ao cais de Salvador saíram os Capitães de Areia – moleques que aprenderam desde cedo a ganhar a vida pelas ruas da capital baiana. Quem se aventura a “desbravar” a cidade, enveredando por suas ruas pouco conhecidas, ainda encontra os velhos prédios. Tão abandonados quanto na época em que foi escrito o livro. Quem preferir fazer um passeio pela “Bahia Turística”, também vai se deparar com cenários deslumbrantes. Pelo Campo Grande, o boêmio Vadinho se desmanchou em folia, durante o carnaval. “Vadinho, o primeiro marido de Dona Flor, morreu num domingo de carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco, na maior animação, no Largo Dois de Julho, não longe de sua casa”.
Pelo Pelourinho, desfilaram outros diversos tipos criados pelo escritor baiano. “No amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam. Universidade vasta e vária, se estende e ramifica no Tabuão, nas Portas do Carmo e em Santo Antônio Além-do-Carmo, na Baixa dos Sapateiros, nos mercados, no Maciel, na Lapinha, no Largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas e no Rio Vermelho”, relata Amado em “Tenda dos Milagres”.
É neste cenário – que hoje abriga, em um de seus largos, a Fundação Casa de Jorge Amado, também guardada por um guerreiro, a exemplo de sua casa no Rio Vermelho – que os personagens de Pastores da Noite descobririam a vida. “Pastoreávamos a noite como se ela fosse um rebanho de moças e conduzíamos aos portos da aurora com nossos cajados de aguardente, nossos toscos bastões de gargalhadas”.
Descendo para a Cidade Baixa usando o elevador Lacerda, onde, bem próximo, o Sem-Pernas – um dos Capitães de Areia – se jogou para a morte para fugir da polícia, dá-se de cara com o Mercado Modelo, onde “o ABC de Antônio Balduíno [o herói de Jubiabá], trazendo na capa vermelha um retrato do tempo em que o negro era jogador de boxe, é vendido”. É no Mercado Modelo, tão cantado por Jorge Amado, onde se pode encontrar, disputando espaço entre tantos outros produtos, um boneco do escritor baiano, com suas camisas floridas, cabelos brancos e um livro sob o braço. O mesmo livro que, com alguma imaginação, pode-se ver todos os tipos descrito por ele ao longo de sua vida.

A Bahia, segundo o escritor baiano

Em 1944, Jorge Amado lançou “Bahia de Todos os Santos”, uma obra em que rende homenagens à capital baiana ao descrever com detalhes cada uma de suas grandes atrações. Como diz o próprio escritor, trata-se de “um guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador”. Eis alguns pontos:

LARGO DA SÉ – “A Rua da Misericórdia desemboca no Largo da Sé. No outro extremo do Largo começa o Terreiro de Jesus, com suas igrejas e com a Faculdade de Medicina (no mesmo lugar onde ficava o Colégio dos Jesuítas nos tempos coloniais). No largo da Sé misturam-se sobrados antigos com edifícios novos. Lá se encontram o prédio da Circular, o Cinema Excelsior e o Palácio Episcopal”.

BAIXA DOS SAPATEIROS – “O nome verdadeiro desta rua é José Joaquim Seabra, em honra do político baiano que foi governador do Estado, senador, deputado, ministro, governo e oposição, tribuno, professor e jornalista. (...). Pois bem: ainda assim não há quem se refira à Rua José Joaquim Seabra. É a Baixa dos Sapateiros, a Baixinha como o povo a trata com familiaridade”.

CORREDOR DA VITÓRIA – “O Corredor da Vitória, artéria larga e arborizada, parte do Campo Grande e foi moradia de nobres. Ali ressoavam nomes pomposos, títulos monárquicos, vários de seus moradores viviam na saudade dos tempos de Pedro II e dos escravos, das aias negras para catar cafuné e para levar cocorotes”.

CAIS – “As velas dos saveiros cortam a Baía de Todos os Santos, vêm do Mar Grande, de Maragogipe, de Cachoeira e São Félix. No cais Cairu, em frente ao Mercado eles descansam. Ali arriam as velas, ficam balançando tranqüilamente sobre as águas”.

PELOURINHO – “O coração da vida popular baiana situa-se na parte mais velha da cidade, a mais poderosa e fascinante. Refiro-me às praças e ruas que vão do Terreiro de Jesus, contendo suas igrejas – são cinco, cada qual mais suntuosa, e entre elas estão a Catedral, a Igreja de São Francisco, e a Ordem Terceira com sua fachada esculpida – descem pelo Pelourinho, sobem pelo Paço e pelo Carmo, desembocam em Santo Antônio, junto à Cruz do Pascoal, ou nas imediações da cidade-baixa, ao lado do velho Elevador do Tabuão”.

IGREJAS – “A Bahia orgulha-se das suas igrejas católicas, suntuosas, monumentos arquitetônicos realmente admiráveis, algumas muito belas, outras muito ricas, várias marcadas por especial devoção popular. Diz a lenda que a cidade do Salvador conta com 365 igrejas, uma para cada dia do ano. Dizem os amigos dos números exatos que entre igrejas e capelas elas somam 76. Pouco importa”.