Cheiro de livro
Sou um confesso viciado em cheiro de livro velho. Aqueles livros que ficam esquecidos na estante por anos e, de repente, você se pega com ele nas mãos e eis que bate uma saudade das personagens e daquele tempo em que você o leu pela primeira vez - num lugar que nem se lembra mais. E ao tentar se lembrar de onde o leu você o abre numa página qualquer, analisa o papel amarelecido e de repente aquele cheiro de nostalgia invade, narina adentro, todos os seus pensamentos. E você quer ter a certeza de que o cheiro de tempo vem mesmo do livro, então o leva até o nariz, respirando um passado cheio de histórias – está bem, tem ácaro também, mas o que são seres minúsculos diante de uma saudade tão grande? Livro velho conta pelo menos duas histórias. Uma delas, a criada pelo autor, faz você viajar por cidades desconhecidas como se tivesse um guia de ruas nas mãos. Pode seguir a orientação do mapa, mas também pode pegar alguns atalhos. E o bom mesmo é pegar atalhos porque, no final, se chegará ao mesmo local que o leitor comum. Com a vantagem de ter conhecido outros lugares quase despercebidos na leitura. Mas há muitas outras histórias em livros velhos. Histórias que não estão documentadas na narrativa. São as feitas pelos leitores, nunca pelas personagens. Quando compro um livro num sebo, fico imaginando por quantas mãos ele passou até chegar às minhas. E esse exercício puxa outro e outro e mais outro: em que período da vida o leitor anterior fez a leitura? Que emoções sentiu e por que se desfez do livro? Apenas esses questionamentos – que não são possíveis nos livros novos, recém-saídos da gráfica todo engomados em roupa de festa – já valem o convívio com os ácaros. Melhor do que cheiro de livro velho somente cheiro de livro velho em dias de chuva, quando o bom mesmo é ficar sob as cobertas acompanhado de uma boa história. Sempre que chove lembro dos livros que lia deitado na rede da casa dos meus pais, ouvindo o barulho da água no telhado em companhia de Pedro Arcanjo, Gabriela, Jubiabá e tantos outros personagens de Jorge Amado. Sempre quando chovia, o escritor baiano batia à minha porta e ia me oferecer mais uma de suas histórias na rede da velha casa. “Escuta, trouxe uma mulher-dama porreta pra tu. Chama-se Teresa. Teresa Batista, tua criada. Dá-lhe guarida em tua rede, pois a infeliz está cansada de guerra”, dizia-me ao pé do ouvido, numa confidência somente possível a quem sabe do prazer de ler. Foi também num dia de chuva que li, aos 14 anos, um livro que marcaria a minha vida. O Bosque das Ilusões Perdidas – título em português para o original Le Grand Meaulnes – foi escrito em 1913, pelo francês Alain Fournier, que morreria um ano depois atingido por uma bala na cabeça durante combate na Primeira Guerra. Autor de único livro, Fournier conseguiu pôr a alma em sua obra. O Bosque das Ilusões Perdidas é uma metáfora da passagem da infância para a adolescência – daí ter me tocado tanto à época. Conta a aventura sentimental de Agostinho Meaulnes, seu misterioso trânsito pela vida – para muitos, o tal bosque das ilusões perdidas. “Tudo é ao mesmo tempo real e irreal na aventura do protagonista, na perseguição a uma mulher que vira apenas uma vez e que para sempre marcaria a sua existência”, escrevera um crítico em 1977, ano de lançamento da obra no Brasil. Tudo no romance havia me tocado na época em que o li pela primeira vez, tomado por empréstimo de uma biblioteca pública em Arapiraca: a descoberta do primeiro amor, a conquista de amizades verdadeiras e essa passagem dolorosa da infância para a adolescência que deixa marcas que vão muito além das espinhas. Passei duas décadas sem me lembrar do livro. Até que, quando pesquisava para O Pianista do Silencioso, o encontrei por acaso um sebo em Curitiba (PR). Comprei o exemplar – cuidadosamente envolvido num plástico empoeirado – e o guardei na estante até o momento certo da releitura, fato que só aconteceria alguns meses depois, quando finalmente tinha concluído as minhas pesquisas. A minha curiosidade em reler a obra – que aliás figura entre os cem melhores livros do século XX – dava-ve por vários motivos. O principal deles era resgatar os sentimentos com que o li pela primeira vez, em meados dos anos 80. Mas também queria saber se o livro era realmente bom. O fato é que, juntando o cheiro de livro velho, a história bem escrita e a magia que somente a literatura é capaz de proporcionar, achei O Bosque das Ilusões Perdidas ainda melhor. A ponto de ficar com pena de terminar a leitura, uma espécie de sofrimento por antecipação, o que chamo de saudade do futuro. E ainda hoje, de vez em quando, apanho o exemplar na estante, abro-o numa página qualquer, toco o seu papel amarelado e deixo o cheiro de saudade invadir a minhas ruas de sentimentos.
This entry was posted on 1 de abril de 2008 at 3:41 PM. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.
#1 by Anônimo - 5:50 PM
Bicho, que viagem é essa aí em cima? Se não me engano, já vi coisa parecida nos comentários do teu blog...
Bom, ainda estou vivo. Aliás, pretendo viver por muito tempo ainda, a despeito de todas as chateações da vida. (Quem por acaso vier a ler este comentário não vai entender nada. Bom, poucas coisa são verdadeiramente entendíveis, de modo que não há nenhum problema nisso.)
Agora sim: este comentário é apenas para elogiar o seu texto, e para assinar embaixo. Cheiro de livro é uma maravilha. E se ele nos remete a algum passado bom, de leitura com chuva, na rede (por que será que as experiências dos leitores são sempre mais ou menos parecidas?), aí então é muito melhor.
Belíssimo texto!
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