Um achado e um livro de dicas

Eis que passando pelos alfarrábios do Centro, numa tarde sem pressa, dou de cara com os seis primeiros volumes da coleção Jorge Amado lançada pela Cia das Letras. Todos lá, intactos, novíssimos, cheirando a papel recém-saído da gráfica. E o que é melhor: por menos da metade do preço. Endoidei. Por vários motivos: era Jorge Amado vestido em roupa de festa, com manequim feito caprichosamente pela Hugo Boss da Literatura; endoidei mais ainda porque estava sem grana (meu carro, isso mesmo, acredite, o carro recém-comprado já está me torrando todas as economias e, aliado a isso, o fato de o fim do mês já me ter raspado o tacho das economias). O que fazer diante daquela preciosidade vendida a preço de coentro em resto de feira? Fui em casa, catei uns oito livros da auto-ajuda -do tempo em que eu era editor de Cultura da Tribuna e esses livros me vinham aos montes - e voltei ao sebo. E eis que troquei os oito títulos de "terapia de bolso" pelos seis Jorge Amado recém-lançados. E como aprendi a pechinchar, ainda ganhei O General em seu labirinto, uma edição antiga, mas conservada, da Record. E no mesmo dia em que apanhei a nova relíquia, larguei a leitura de Cartas a um jovem escritor, de Mario Vargas Llosa, para iniciar A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, uma leitura que havia feito há pelo menos 20 anos e não me lembrava mais como me tinha sido agradável. Leitura rápida, feita num dia de preguiça. Mas descobri algo fantástico, graças justamente ao livro de Llosa abandonado para dar lugar ao do escritor baiano. Numa novela sem pretensão - escrita no prazo de uma semana a pedido de uma revista - Jorge Amado escreveu um achado. E descobri isso graças a Cartas a um jovem escritor. Mario Vargas Llosa diz que um bom livro se mede pelas guidanas e os saltos qualitativos que a história dá ao longo das páginas. Ele exemplifica com alguns romances famosos - em especial da literatura latina. Cita, por exemplo, livros que começam com uma história realista e, de repente, descamba para a literatura fantástica. Pois bem, essa guinada, quando é bem feita, promove o que ele chama de cráter literário (algo como ponto alto do livro). Pois não é que A morte e a morte... promove exatamente isso!? Ao narrar as duas mortes de Quincas Berro Dágua, Jorge Amado sai do real (a morte velada pela família do morto) para o fantástico (quando a personagem, mortinha da silva, é levada pelos quatro amigos bêbados para uma farra em alto mar). E aí me apaixonei ainda mais pelo baiano de cabelos brancos e roupas floridas. Mas a aquisição dos primeiros volumes da coleção de Jorge Amado me serviu para outras reflexões. Fiquei sabendo, por exemplo, que A morte e a morte... foi escrito num prazo de uma semana - num intervalo de feitura de Capitão de longo curso. O que isso significa? Para mim, que quando uma idéia aparece e vem de forma muito forte, é melhor lhe dar ouvidos. Mesmo que em detrimento de outra. Pois isso é o que acabo de fazer. Tive uma idéia que me parece apetitosa. Envolve Graciliano Ramos e um personagem fictício que já lhe criei o perfil. O fato é que estou em busca das obras de não-ficção do Velho Graça - incluindo a sua biografia escrita por Denis de Morais - para dar alma a este personagem ficcional. Devo ir a Palmeira dos Índios em breve, para fossar na casa-museu do escritor alagoano. Quero ver manuscritos, originais, material farto que encontrar por lá. Mas para os que me lêem por ora, quero recomentar - quando tiverem um tempo - uma dedicação de tempo a Cartas a um jovem escritor. Emprestaria até o meu exemplar, mas sei que muitos de vocês se incomodam com as marcações que costumo fazer ao longo das obras que me chamam a atenção. Algumas transcrevo aqui; outras, conhecerá quem tiver interesse em ler o livro:
  • "O reconhecimento público, a venda dos livros e o prestígio social de um escritor seguem um caminho sui generis, incrivelmente arbitrário, pois às vezes se esquivam teimosamente dos que mais os merecem e assediam e assoberbam os que menos lhe fazem jus".
  • "Inventar histórias é uma maneira de exercer a liberdade e de lutar contra os que - religiosos ou leigos - gostariam de aboli-las".
  • "Sua decisão de assumir como destino seu gosto pela literatura terá que se converter em servidão, em nada menos que escravidão".
  • "Acho que só quem adota a literatura como se adota a religião, disposto a dedicar a essa vocação seu tempo, energia e esforço, está em condições de chegar a ser verdadeiramente um escritor e a escrever uma obra que o transcenda".
  • "Não existem romancistas precoces. Todos os romancistas grandes, os admiráveis, foram, no começo, escritores aprendizes cujo talento passou por uma gestação alimentada pela constância e pela convicção".
  • "Por si só nenhum tema é bom ou ruim em literatura. Todos podem ser ambas as coisas, e isso não depende do tema em si, mas daquilo em que um tema se converte quando se materializa num romance por meio de uma forma, ou seja, de um estilo e uma estrutura narrativos".
  • "Não faz a menor diferença se um estilo é correto ou incorreto, o que importa é que seja eficaz, adequado ao seu propósito, que é dotar de ilusão de vida - de verdade - as histórias contadas".