História de livros


Acordei hoje com uma vontade maltrapilha de trabalhar num alfarrábio, em meio a traças, ácaros lambões e estantes envelhecidas. Tem sido assim há algumas semanas, desde que passei a me encafuar em alguns sebos da cidade, aprendendo palavras novas em livros velhos – entre elas “encafuar”, resgatada em coma de um livro de medicina. Há alguns dias, estive num desses locais a fim de encontrar alguns títulos para uma pesquisa que intento realizar. Empilhados entre estantes mal iluminadas, milhares de volumes – somente de autores alagoanos são mais de mil, todos catalogados em ordem alfabética – cobertos de poeira e sabedoria. O problema, em se tratando deste sebo, é que a proprietária não faz idéia das obras que possui. E isso atrapalha muito, principalmente se o cliente não sabe exatamente o que deseja. Durante o tempo em que permaneci no local, pelo menos dez pessoas estiveram procurando livros. E boa parte teria saído de lá mais confusa do que entrou se, inconscientemente, eu não me dispusesse a ajudar.

- A senhora tem Crime e Castigo? – quis saber o rapazola de semblante aéreo, coberto de suor e dúvidas.

- De quem é?

- Não sei. Um amigo me indicou...

- Dostoievski – atalhei, do alto da escada, perdido entre o A e o B da estante.

- Doutor o quê? – perguntou a dona do sebo, mais confusa do que o outro.

- Dostoievski – respondi pelo rapaz, que deve ter percebido a falta de conhecimento da outra, pois deu meia-volta e desapareceu porta afora, quase chocando-se com outro sujeito que, distraído – olhar pousado sobre um papel amassado – não vira o suado saindo às pressas.

- Queria saber se tem Os Dez dias que abalaram o mundo – disse o que acabara de entrar, ainda abalado com a pressa do outro.

- Que abalaram o mundo ou o Brasil? – tentou arranjar a proprietária.

O rapaz deu as costas e foi embora.

- Ei, espere aí que vou procurar! – ainda tentou emendar a dona.

As cenas se repetiram durante todo o tempo em que estive lá. Um rapaz de Santana do Ipanema aproveitara o tempo vago durante sua estada na capital e fora pesquisar uns livros que lhe haviam recomendado. Tudo anotado em papel suado, traçado com garatujas incompreensíveis. Na primeira pergunta que ele fez, a proprietária – que havia acompanhado as minhas dicas para alguns clientes – já mandou o santanense ir me procurar.

- O senhor trabalha aqui?

- Infelizmente não – respondi, com um olhar desfilando caprichosamente sobre os milhares de títulos da loja.

Mesmo assim, o rapaz me foi perguntando sobre literatura – brasileira e estrangeira –, até a conversa desabar para cinema e música. E em menos de 20 minutos, parecíamos amigos velhos. Enquanto isso, outros clientes entraram no estabelecimento procurando edições antigas.

- Fulano! – gritou a senhora, para o sobrinho que trabalhava com ela, limpando e empilhando livros nas estantes. – Cadê aquele livro de capa amarela que separei ontem?

E nada do tal Fulano responder.

- Fulano, cadê o livro!?

E o Fulano em perfeito silêncio.

- Fulano, seu crente mentiroso! – disparou, recorrendo à primeira falha de caráter do sobrinho. - Cadê o livro do rapaz, indigente!?

À esta altura, eu e o santanense havíamos parado a conversa. Ele adquiriu alguns títulos, identificou-se e se despediu.

- E quando for a Santana do Ipanema, não deixe de me visitar.

Voltei para a minha busca, encontrei alguns títulos interessantes e ganhei 50% de desconto por ter ajudado a proprietária com os clientes.

  1. gravatar

    # by Anônimo - 8:44 AM

    Poxa vida, que delícia ler o seu blog! Bem... "Crime e Castigo" tinha ou não nesse sebo?

    :)

  2. gravatar

    # by Carlos Nealdo - 9:23 AM

    Obrigado pela visita, Gabi. Fico feliz por seu comentário. Ah, tinha sim, o livro. Mas crime foi o rapaz não o ter levado.
    Volte sempre!