Semente

A tarde ainda não morrera e eu já juntava corpos mutilados em tragédias alheias. O barulho na redação não me impede de ouvir o jardineiro lá fora anunciando o início da Primavera. Na mesa da secretária, as flores de plástico enfeitam sem perfumar, para desespero de borboletas imaginárias que finjo enxergar entre as notícias que edito. Morte. Com o tempo, a profissão nos reveste de um potente isolante térmico e tudo o que sentimos é frieza. Dramas humanos parecem ter importância apenas nas páginas dos jornais, determinando – a depender de seu grau – o espaço que ocuparão na edição de amanhã. Antes do fechamento da edição, a única morte que nos tira do sério é a do prazo de fechamento – o tal do Deadline –, que estava se aproximando a galope. Penso nisso e resolvo comer uma maçã esquecida sobre uma notícia recém deixada à mesa, ao lado do copo descartável. Maçã grande, bonita e oferecida. Lembra a fruta entregue pela bruxa à Branca de Neve. Mas sem veneno, sem bruxa e sem Branca de Neve, como convém. Por um instante, o cheiro de morte é substituído pelo olor adocicado da fruta, que devoro como se tivera morto de fome. Ao fim, jogo os restos no lixo cheio de notícia de ontem – interessante apenas ao peixeiro de amanhã – e retorno à edição de mortos. Ao concluir a última matéria, as almas de todos vêm em peso sobre mim. Só então me dou conta de que a morte é um fardo denso para quem permanece vivo. Fecho o programa e recolho o material espalhado pela mesa. Apanho o copo descartável com o intuito de tomar água – quem sabe lavar a alma das impurezas da profissão. Desisto porque, no fundo branco do recipiente, uma semente de maçã me surpreende. Aproveitando-se das gotas de água que ficara no copo, o pequeno grão calhou de germinar, numa lição explícita e inconteste de vida. E que me faz esquecer dos mortos. E vou para casa com o pequeno milagre ainda depositado no copo, pensando na ressurreição. Naquele momento, a semente me é mais valiosa do que o beijo que abrira os olhos da Branca de Neve.