Fastio

Ando com fastio. Um fastio rabugento – espécie de anorexia criativa que tem deixado magro tudo o que escrevo. Uma magreza tão profunda que qualquer brisa carrega o que é produzido para bem longe, como num buraco negro do universo literário, onde tudo se perde sem explicação. Um livro espera pacientemente para ser concluído, mas meu tédio tem me afastado das personagens; me expulsa do computador e me acomoda deslavadamente diante da TV, onde as porcarias se espalham na retina preguiçosa. Termino a noite vendo pancadaria em horário nobre. E vou pra cama com o corpo dolorido, como se todos os golpes me ferissem o peito. Tentando mudar isso, estou postando parte do primeiro capítulo do livro, que me chama desesperadamente à conclusão. Espero que gostem. Espero que opinem. Espero que leiam. Espero. Mas juro que não queria esperar...

Uma notícia de véspera

Maceió, sábado, 05 de novembro de 1927.

Em dias ordinários, a Rua da Boa Vista, no centro da cidade, é um inextricável burburinho de gente estranha que se mistura aqui e além, com palavras e sons indistinguíveis levados pelo nordeste. O vento chega morno, lambe displicente a pele do transeunte distraído e vai deitar o murmurinho nalgum ouvido alheio, levando para a Boa Vista os reclames das ruas próximas. Comércio farto, novidades mil anunciadas pelas lojas em busca do comprador compulsivo e abastado. Nessa balbúrdia, os pregões se misturam num balé de palavras incompreensíveis – o que é desta loja passa a ser daquela: o morim especial da Paris que o rapazote anuncia vem misturado com as novidades anunciadas a retalho da Brasileira. Um inferno para os que tentam prestar atenção nas ofertas e, concomitantemente, se livrar do movimento desordenado da rua, que mistura pedestres, veículos e bicicletas desgovernadas.
O movimento de bicicletas, destaque-se, havia aumentado consideravelmente na cidade desde janeiro, depois da disputada corrida promovida na capital para festejar o ano novo. Os modelos Britannias, que concorreram com outras quatro marcas, conquistaram os três primeiros lugares do certamente, fato enaltecido em reclames dos jornais por L. Porto Nogueira, que se dizia agente exclusivo da marca e garantia, em sua loja da Rua 10 de Março, peças sobressalentes para as bicicletas. Ajudadas pela corrida de janeiro e pela propaganda, as vendas contribuíram para infestar a cidade de bicicletas, trazendo confusão durante o dia, para algumas ruas do centro.
Nos bares e cafés, esmiúçam-se os assuntos da política, da vida social, frivolidades, tudo. Comentam-se os filmes em cartaz, os espetáculos exibidos por companhias nacionais, literatura da moda; histórias de pessoas comuns passam de boca em boca, mesclada à aguardente e à cerveja servida gelada. Um homem de bigode espesso, sentado à mesa de um dos cafés da Rua do Comércio, lê para si um anúncio no jornal sobre o espetáculo da célebre Flora Garcia, a Rainha dos Empregados do Comércio de Maceió. Fecha os olhos e suspira, depois se sorver um gole do aromático café. Volta à realidade com os gritos do propagandista da rua, anunciando os milagres executados pelo cirurgião dentista J. Leão Rego, cujo consultório – instalado junto à Inspetoria da Guarda Civil – atrai uma batelada de clientes. O homem de bigodes lembra-se do sorriso de Flora Garcia. Volta a suspirar, sorver o café da xícara e repousar mais uma vez o olhar nas páginas do jornal.
- Quem poderá resistir a um sorriso de uma mulher? – pergunta o propagandista ao longe. – Ninguém, se forem absolutamente perfeitos os seus dentes...
- No momento é a Loja Paris a única que tem um sócio comprador nos principais centros da Europa, escolhendo as mais recentes criações em tecidos e miudezas em geral – anuncia outro mais além.
Ao cair da noite, a Boa Vista se transforma, depois de se despedir do barulho diurno e descansar silente, criança acalentada por mãe zelosa, doce melodia nos lábios. É despertada somente de vez quando por algum automóvel ou pedestre à procura de um bar. À noite, a agitação muda de bairro, deixa o centro e vai repousar entre os trapiches de Jaraguá, onde o dinheiro corre solto e as prostitutas se amasiam com senhores de engenhos, abastados de gordura e cobres. Entre os grandes armazéns de açúcar, que guardam o ouro branco que sustenta gerações, os cabarés se abarrotam de gente em busca de prazer. Nesses ambientes, misturam-se estivadores e capitães de indústrias; estudantes e doutores anônimos; professores de línguas estrangeiras e iletrados – doutores no alfabeto do sexo. Com raríssimas exceções, o corpo que serve ao distinto barão também é fonte de prazer do trabalhador do porto, que chega ainda lambuzado de açúcar e melaço, uma delícia para as meretrizes afoitas. Dos usineiros balofos tiram o dinheiro para o sustento diário – a única coisa boa que oferecem os velhos obesos, acostumados a maltratarem o trabalhador, a tratá-los como escória. Dos estivadores esguios, tiram o prazer do corpo, a necessidade da alma, o sexo sem escrúpulos, feito de gemido e gozo. “O senhor de engenho produz o açúcar que lambuza o corpo dos trabalhadores dos trapiches, mas não sabe produzir gemido de gozo”, comentam, deitadas nas camas em que são recebidos os amantes e os endinheirados proprietários de terras.
José Magalhães da Silveira pensa na tranqüilidade noturna da Boa Vista ao parar diante do sobrado de primeiro andar de número 115 da rua, onde funciona a redação e as oficinas do Jornal de Alagoas, o matutino fundado pelo irmão Luiz Magalhães, em 1908. Esperou o caminhão Opel – com seu motor alemão de quatro cilindros e 45 cavalos de força – rasgar o silêncio noturno e atravessou a rua, parando à entrada do prédio. Voltou a olhar a rua deserta e se encafuou no sobrado pouco iluminado. Periódico de oposição, o Jornal de Alagoas fora fundado para combater a oligarquia dos Malta, encabeçada pelo ex-governador Euclides Vieira Malta, que mantinha forte influência política no estado desde o início do século.
Pernambucano de coragem inabalável, em pouco tempo Luiz Magalhães da Silveira ganharia o apelido de Espantalho das Oligarquias, tal era a virilidade com que atacava, em seu jornal, os poderes constituídos. Sua determinação, coragem e paixão pelo jornalismo ganhariam rapidamente a admiração dos profissionais do periódico gerenciado pelo irmão José, que dividia o tempo entre a redação e as finanças do jornal. Naquela noite, quando ele chegou à redação – varando antes as oficinas onde Mestre Elísio costumava compor, com sua equipe de tipógrafos, as páginas do periódico – o jornal estava deserto. Fora ao prédio naquela noite para checar a primeira página da edição de domingo e fazer as últimas emendas no editorial que preparara sobre as eleições municipais que aconteceriam na segunda-feira, em todo o Estado. As oito páginas do jornal já estavam todas prontas – a maioria já havia ida para a rama, restando apenas a lâmina da página 3, onde seria veiculado o editorial. Quando José Magalhães da Silveira chegou à redação, o cheiro de cigarro e tinta que impregnava a sala de pouco mais de 16 metros quadrados – poucos móveis e raríssimas cadeiras – denunciava que o mestre passara por ali – devia ter saído para tomar uns tragos num bar próximo, um costume infame de todos que lidavam com o jornalismo. As escapulidas do trabalho eram comuns em praticamente todos os profissionais do jornal. Edições demoradas, hábitos noturnos e a necessidade de arejar a cabeça faziam com que jornalistas e gente das oficinas se metessem nos bares próximos, enchendo a cara de aguardente e prazer. “Estou de olho ardendo e perna bamba. O tempinho que eu tenho agora vou tomar uma dose ali no bar, para agüentar até o fim” era uma frase comumente usada pela maioria dos que apreciavam uma Polônia gelada, uma das anunciantes do Jornal de Alagoas. “A Cervejaria Polônia é a única fonte de felicidade que existe no mundo, porque as suas bebidas são néctares de incomparável suavidade, são tônicos e refrigerantes e indispensáveis a todas as pessoas”, dizia o reclame encravado nas páginas do jornal. Mal liam o anúncio, os trabalhadores das oficinas se metiam num bar para checar a autenticidade do texto. Havia quem levasse o violão, deixando-o repousando num canto da sala, junto a chumbos, restos de tintas e chapas usadas de páginas velhas de jornal. “Bebida combina com boemia”, alegavam. Fazer o quê? No máximo era rezar para que a edição do dia seguinte saísse com menos erros do que o costume.
Nas oficinas, o horário das 16 as 20 era sinônimo de vacatura. Nesse intervalo, as moças que ajudavam na composição das páginas – melando os dedos de tinta em troca de um salário miserável que dava, quando muito, para a entrada do cinema ou uma jóia de plaquê – se arrumavam e se metiam numa das cadeiras do Cinema Floriano, Capitólio ou Cine-Teatro Delícia, que exibiam fitas do cinematógrafo norte-americano. Afundadas nas poltronas das salas de exibição, cheirando à água de colônia e sabonete Victória Régia – que compravam por tostões na Rocha Lima & Cia. – sonhavam com os galãs de fitas como O Sol da Meia-Noite, “uma verdadeira obra-prima lançada pela Universal Pictures. Dez primorosas partes. Deslumbrantes cenários. Maravilhosa interpretação da grande e sedutora Laura La Plante e dos queridos Pat O’Malley e Raymundo Keane”. Ou Sua Majestade, a Mulher, uma fita da Fox estrelada por George O’Brien e Olive Borden, que prometia dominação do seu maior vassalo: o homem.
Cheias de esperanças e tinta, as sonhosas do Jornal de Alagoas suspiravam com as imagens irreais da tela, loucas para encontrarem um galã de cinema e viverem a quimera de ter enfim o velho anel de plaquê trocado por aliança do puríssimo ouro – dane-se o latão que não tinha como enfeitar o dedo sujo! Terminada a fita, enfurnavam-se novamente nas oficinas da Boa Vista, compondo tipos e descompondo sonhos, o olhar ainda perdido na tela do cinematógrafo, o sorriso denunciando o sonho recém-vivido, o suspiro pelo galã exposto em close em tela colossal. Novamente as mãos sujas do pretume da tinta, novamente o trabalho que mal dava para o cinema.

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    # by Anônimo - 4:25 AM

    Como acabar esse fastio que nos consome Nealdo?

    Vc deu um passo, espero segui-lo, espero. Belo capítulo!

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    # by Carlos Nealdo - 9:47 AM

    Pois é, minha amiga. Ando procurando um desenibidor de apetite cultural. Hei de achá-lo...