Fama & Anonimato

Paulo Brabo
Em 1554, um escritor anônimo de origem espanhola publicou um livro que viria a influenciar a literatura ao redor do mundo através dos séculos. É bem provável que, sem La vida de Lazarillo de Tormes, não conheceríamos Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, nem João Grilo, o amarelo picaresco de Ariano Suassuna. Pelo menos não da forma como essas personagens vieram à luz. Tanto Cervantes quanto Suassuna consideram Lazarillo o pai de suas duas criações. Não é por acaso. Lazarillo, Quixote e o Grilo têm características comuns, começando por serem abandonados à própria sorte, desde cedo condenados à luta pela sobrevivência, tirando todo o aprendizado das lições que a vida lhes dá. “Pois saiba Vossa Mercê que me chamo Lázaro de Tormes e sou filho de Tomé Gonzalez e de Antona Perez. O meu pai, que Deus o perdoe, era encarregado do moinho que fica na margem do rio, onde foi moleiro por mais de quinze anos. E estando a minha mãe uma noite no moinho, ali me deu à luz. De maneira que posso em boa verdade dizer que sou filho do rio”, apresenta-se a personagem do escritor anônimo. O resto é, literalmente, história. A vida de Lazarillo de Tormes é tão importante para a Literatura que ainda hoje, na Espanha, as universidades recebem teses de estudiosos sobre a identidade do autor da obra. Alguns a atribuem a Sabastián de Horozco; outros, a Juan Ortega; outros ainda, a Diego Hurtado de Mendoza. Enquanto isso, o espírito do verdadeiro autor caçoa de todo mundo, como fizeram os próprios Lazarillo, Quixote e João Grilo. Como? “Não sei, só sei que foi assim”, parodiando Chicó, o amigo do “grilo mais inteligente que já passou por essa terra”. Eu invejo os anônimos – especialmente aqueles que preferem ficar à sombra e deixar que suas obras falem por si, sabedores que são dos perigos que é se banhar de luz. Recentemente, um estúdio americano elaborou uma grande campanha para a divulgação do filme Marley & Eu, de David Frankel. Espalhou cartazes gigantes em paradas do metrô e de ônibus, além de outros lugares de Nova York. Era tanto anúncio que chegava a incomodar a visão. Na calada da noite, um gaiato anônimo pichou todos os cartazes que conseguiu, com a frase “o cachorro morre no final”. Há algum tempo, recebi uma fotografia por e-mail de um templo evangélico – desses de ponta de rua, em que o barulho dos fiéis incomoda um cristão num raio de dez quilômetros. Na parede da igreja, alguém sem se identificar escreveu: “orem mais baixo, Cristão não é surdo”. Eu admiro os anônimos. Principalmente quando escrevem o que eu tenho vontade de fazer, mas não tenho coragem. Uma admiração ao ponto de querer pedir autógrafo. Pena que não sei a quem.