Entre & Vista

"Olha o que penso sobre isso"*

Quem é Carlos Nealdo?
Saí de Arapiraca, onde nasci em 1970, para fazer Jornalismo na Universidade Federal de Alagoas. Depois que me formei, em 1996, comecei a trabalhar na Tribuna de Alagoas. Fiquei onze anos no jornal, exercendo diversas funções, entre elas a de editor de Cultura. Depois, fui convidado pela Gazeta de Alagoas para editar Economia, editoria em que fiquei por ano. Atualmente, estou editor de Cidades do mesmo jornal. Paralelo a isso, sou assessor de Imprensa de uma agência de publicidade – a Six Propaganda –, onde também desenvolvo o meu lado publicitário. Gosto essa dualidade jornalismo e publicidade, que acaba me abrindo muitas possibilidades.

Quando e como você deu os primeiros passos na literatura?
Em 1988, o SESC instituiu um concurso estadual de Literatura. Na época eu fazia o segundo grau e já gostava de escrever algumas poesias, mas sem nenhum compromisso – tanto que escrevia entre uma aula e outra, em meio a anotações de Matemática, Português e Física. Alguns amigos sabiam desse meu lado e começaram a me incentivar para inscrever alguns poemas. Lembro que hesitei, não tinha pretensão nenhuma. Mas de tanto insistirem, inscrevi duas poesias no concurso. No dia do resultado, sequer apareci à solenidade. Mas no dia seguinte, os amigos que tanto insistiram apareceram lá em casa com dois troféus – o de primeiro e terceiro lugares. Aquilo me deixou muito feliz e me ajudou a continuar escrevendo. No ano seguinte, o SESC realizou o segundo concurso e eu inscrevi outro poema. Que também ganhou o primeiro lugar.

Poesia, conto, crônica, romance, haicai... Como definir que linha a seguir diante do tema? É fácil?
Não há como definir exatamente que linha seguir. Às vezes uma idéia surge quase pronta para um poema e não há como fugir dela. Outras, uma frase metricamente perfeita se encaixa num haicai. Mas isso é relativo, porque não há regras para definir o que deve ir para um poema, um conto ou um romance. Já li vários contos que dariam um belíssimo romance. Ou romances que ficariam muito bem num conto. Ou poemas que poderiam ser usados como prosa. Enfim, cada momento é único. O tema vem e lhe pega de braços abertos, ora para a poesia, ora para a prosa. Não é uma tarefa fácil. Nada é fácil em literatura. Antes, é uma questão de exercício contínuo.

Você sempre participa de concursos literários. O que significa esse exercício da livre concorrência? Você é estimulado pela competição, ou o quê então?
Na verdade, não se trata unicamente de estímulo. Publicar no Brasil ainda é uma tarefa muito árdua. Todo mundo diz: "hoje há centenas de editoras que lançam pequenas tiragens por um preço razoável". Até concordo, mas entre publicar e distribuir os livros, há um caminho doloroso. Quando publiquei O Pianista do Silencioso, me vi com mil exemplares debaixo da cama sem saber o que fazer com eles. Então você pensa: "vou juntar forças para sair vendendo como posso". Num estado em que quase não há livrarias, você tem que encontrar meios alternativos de vendas. E é um trabalho de formiguinha entre você e você mesmo. A solução de ser visto – ou pelo menos lido – são os concursos literários que acontecem por aí. Na verdade, sou estimulado pela idéia de ser lido. Ninguém escreve para si. Todo mundo que escreve quer ser lido. Se assim não o fosse, a gente ficaria com a idéia na cabeça. E bastava. Mas não é isso. A gente quer compartilhar o que a gente pensa. E os concursos literários são uma forma de isso acontecer. Não busco o resultado. Trata-se, na verdade, de um grito, uma forma de dizer: "Olha o que penso sobre isso".

De onde vem tanta inspiração? Qual é o segredo de boas linhas?
Quando eu fazia Jornalismo na Ufal, meu professor de Estética comentou, ao saber que eu havia ganhado dois prêmios de poesia, que "aquilo" não passava de arroubos da juventude; que escrever não é sentimento, mas técnica. Em vez de me desestimular, ele me abriu uma porta de tamanho colossal. Porque, de fato, escrever exige mais técnica do que sentimentos. Se não fosse assim, não se precisaria de escola de jornalismo para narrar os fatos que acontecem por aí. No jornalismo, como na literatura, você precisa de técnica para dizer, por exemplo, que os conflitos na Faixa de Gaza mataram mais de mil pessoas. E dizendo isso, empregando todas as técnicas da profissão, certamente você vai tocar o coração de milhares de pessoas. Aí você pode dizer: "ah, mas os conflitos são reais, são dramas humanos!" E o que é a literatura senão dramas humanos?

Você escreveu o livro O pianista do silencioso. Em que se baseou? O que ele retrata? O que ele representa para a sua carreira?
O Pianista do Silencioso começou a ser gerado em 2002, quando eu li algo sobre os pianistas que sonorizavam os filmes mudos, no início do século passado. Fiquei com a idéia na cabeça, imaginando como seria a vida de um pianista que ganhava a vida sonorizando, "ao vivo", os filmes mudos. Comecei a estudar o tema, li muito sobre cinema mudo, até que me veio a idéia de contar a vida de um desses pianistas. Então imaginei um tocador de piano numa sala de exibição nordestina – longe, por assim dizer, da civilização. Fascinava-me a idéia de um profissional que era mais coadjuvante – porque ficava tocando nos bastidores – do que ator principal – embora realizasse uma função que, sem ele, os filmes estariam prejudicados. Durante as pesquisas, descobri o Cinema Rio Branco, em Arcoverde (PE), considerado, na época, o cinema mais antigo em funcionamento da América Latina. E para a minha felicidade, durante as pesquisas, descobri que o cinema encravado no Sertão nordestino tinha sido palco de uma série de fatos históricos, todos narrados no livro. Como gosto muito de cinema, eu sempre pensei em prestar uma homenagem à chamada Sétima Arte. E o Pianista foi uma forma de realizá-la. Por tudo isso, ele representa um passo – o primeiro, creio – muito importante para mim.

Você o lançou em outras praças? Como foi a recepção? Explique.
Alguns meses depois de lançar o livro em Alagoas recebi convite do Festival de Cinema de Gramado, no Rio Grande do Sul, para lançá-lo por lá. A experiência foi fantástica, o livro foi bem recebido e ainda hoje recebo e-mails de leitores que o compraram lá. A mesma coisa aconteceu com Recife, onde o livro foi lançado durante o Festival de Cinema de Pernambuco. Por ser uma obra independente, é um trabalho de formiguinha, você tem que ir aonde pode ir. Recebi outros convites, mas infelizmente não foi possível – ou por falta de apoio ou por falta de grana mesmo. Este ano, devo fazer um lançamento dele em Arcoverde, no cinema Rio Branco, o mesmo que serviu de "cenário" para o livro. Vai ser uma experiência boa, porque um grupo cultural de lá quer fazer barulho para tentar reabrir o lugar, fechado há alguns anos. Soube que o governo federal chegou a liberar R$ 300 mil para restauração do cinema, dinheiro que nunca foi utilizado. Então esse grupo quer tentar resgatar essa grana e empregá-la na reforma.

Essa troca de experiência trouxe o que para requintar a sua forma de escrever?
Em Gramado aconteceu uma coisa engraçada. Uma estudante de Jornalismo comprou o livro, deu uma folheada, sentou-se diante de mim, durante a sessão de autógrafos, e começou a fazer uma série de perguntas sobre como construir personagem, como elaborar capítulos, como desenvolver os diálogos etc. Ela estava escrevendo um livro e tinha dúvidas sobre um monte de coisa. Então de repente me vi dando uma palestra pra ela e para outras pessoas que se juntaram em volta, sobre o meu método de trabalho. Mas Gramado, em especial, foi muito bom como experiência porque, de repente, me vi trocando "figurinhas" com o Charles Kiefer, que também estava lançando Valsa para Bruno Stein no festival. Foi interessante saber, por exemplo, que ele imagina as suas histórias primeiro como filme, e somente depois é que transcreve o "roteiro" para o papel. E essa troca de experiência é muito boa em qualquer profissão, porque a gente acaba aprendendo algo novo. Não sei o que mudou na forma como escrevo, mas essa troca de conhecimento foi salutar para mim.

Você foi um dos vencedores do "Alagoas em Cena" (Extinto). Projetos como esse que dão certo e em seguida acabam não prejudica o desenvolvimento cultural do estado? O que fazer para unificar a "classe" e exigir dos órgãos públicos mais seriedade com os artistas da terra?
O Alagoas em Cena foi uma iniciativa louvável que não deveria ter acabado. Claro que precisava de uns ajustes, mas isso viria com o tempo – se tivesse havido tempo. E quando um projeto cultural finda, deixa uma infinidade de órfãos – não apenas os que participam dele, mas a sociedade em si. Pena que o projeto tenha sido largado logo no início. O que a classe deveria fazer? Infelizmente, os artistas são dispersos, e isso atrapalha qualquer iniciativa de luta. Mas na verdade, os órgãos públicos deveriam tomar a iniciativa sem precisar ser pressionados. O que acho é que a gente não pode apenas depender do setor público para mostrar a arte. Hoje, há vários espaços fora de Alagoas em que dá pra arriscar em mostrar um texto, uma música, uma pintura. Além disso, há a internet, que é um canal bastante abrangente.

Pela sua experiência nos setores de informação, o artista alagoano pode se expressar livremente, ou existe a censura mascarada?
É preciso entender que buscar um espaço em qualquer que seja o veículo de comunicação é uma tarefa árdua, mas não impossível. Cada jornal tem a sua linha editorial, isso acontece em qualquer lugar do país. Quando eu editava o caderno de Cultura da Tribuna de Alagoas recebia uma quantidade razoável de informação, que tentava publicar, mas nem sempre era possível pela falta de espaço. Muitas vezes, no entanto, acontecia muita coisa que merecia destaque, mas que não chegava até mim. Em muitos casos o que acontece é que o artista, por autocensura, não procura determinado veículo achando que não tem espaço. E acaba deixando de divulgar algo muito rico culturalmente. Por outro lado, tem gente que não se contenta em ser divulgado neste ou naquele jornal. Tem que ser no de maior circulação. Mas se esquece de que todo veículo tem seu público. Se não deu neste, vá a outro e a outro e a outro. O segredo é bater em portas. No maior número delas.

Vejo hoje uma grande quantidade de Blogs que pertencem a escritores, inclusive o seu é muito bom. Por que isso ocorre? Existe uma conspiração contra o papel impresso, ou ele pode conviver dignamente com a modernidade?
Sem trocadilhos, o livro nunca deixará de cumprir o seu papel. Não há sensação melhor do que folhear um livro; sentir seu cheiro de novo ou de velho; levá-lo para qualquer lugar... Acontece que publicar no Brasil é muito difícil. Publicar em Alagoas, então, é quase impossível, dada a falta de editoras. Então os blogs aparecem para preencher esse espaço vazio, porque é uma ferramenta barata e de fácil acesso. O que está acontecendo é que as pessoas estão retirando seus escritos da gaveta e disponibilizando-os na grande rede. A internet é, por assim dizer, uma gaveta sem chaves em que todo mundo pode revirar o que está lá dentro.

Ser jornalista ajuda ou atrapalha o transito nos guetos culturais? Como você enxerga isso?
Eu não gosto muito dessa idéia de gueto. Na verdade, prefiro não acreditar que temos guetos, porque pensar desta forma talvez seja uma maneira de autoexclusão. Durante o tempo em que estive editor de Cultura, fiz algumas amizades no meio artístico que preservo até hoje. Mas também teve muito artista que só falava comigo enquanto eu estava à frente do caderno cultural e hoje sequer me conhece. Ou finge que não conhece. E não são poucos. E isso é uma pena, porque mostra que, para alguns, você só é útil enquanto estiver acumulando uma função que traga usufruto a eles.

Você já foi editor cultural. Nossa cidade, nosso estado, fervilha de atrações locais. Por que os nossos jornais e TVs evidenciam muito mais os artistas de fora, que propriamente os da casa? Nossos artistas têm ou não talento? O que falta para uma melhor mídia?
Não é questão de valorizar mais o artista de fora. Acontece que as assessorias de fora funcionam e funcionam muito bem. Há uma "marcação cerrada" dos profissionais de outros estados que trabalham com divulgação. Eles enviam material promocional, ligam, agendam entrevistas, procuram facilitar a vida do pessoal que cobre cultura. É difícil de imaginar, mas jornalista de redação tem uma vida muito corrida. Cada minuto é valioso. Então, quanto melhores forem as informações que chegam, mais chances terão de publicação. Não basta apenas ter o melhor produto. Isso conta muito, mas se não tiver um material de apoio – que chame a atenção para o produto que se quer divulgar –, haverá uma grande chance de ele não ser tratado como merece. Infelizmente, a divulgação dos artistas locais é geralmente feita pelos próprios artistas e de forma muito capenga. Quando eu editava Cultura, cheguei a receber material de divulgação escrito a mão, numa letra indecifrável. Ora, se o próprio artista não se preocupa com sua imagem, que imagem ele quer que se tenha dele? Muitos artistas sequer entram em contato com as redações. E muitos assessores locais sequer ligam para saber se o material chegou bem, se é necessário mais informações etc. Claro que isso não é tudo. A gente sabe que há a velha "ação entre amigos", feita por aqueles profissionais que facilitam a vida do artista que pertence ao seu ciclo. Isso vai haver em qualquer lugar do mundo, não há como fugir. Mas também não é motivo para desistir. Se não der num jornal, dá em outro.

Seu novo livro é segredo absoluto, ou podemos saber algo dele? Para quando será o lançamento?
Por enquanto não posso falar muito sobre ele, mas adianto que também será uma homenagem, como foi O Pianista do Silencioso, que reverenciou o cinema. Desta vez, pretendo reverenciar a Literatura, narrando a amizade entre um homem comum e um escritor. Também como o primeiro livro, é um romance que se passa no início do século passado, desta vez em Alagoas. Também como o primeiro, mistura fatos reais com ficção. Para isso, passei oito meses pesquisando, lendo muito, visitando o Arquivo Público e o Instituto Histórico e, se tudo der certo, devo lançá-lo até o final deste ano.

Seu momento para finalizar a Entre & Vista a Villa?
Se eu pudesse dar conselhos a quem escreve, diria: escreva sem parar e sempre. Nunca destrua um texto. Se o achar ruim, guarde-o numa gaveta por um longo tempo, até se afastar emocionalmente dele e o analisar tecnicamente. Submeta os escritos a amigos que tenham uma visão crítica, não se importando com o que eles vão achar. Muita gente destrói escritos preciosos simplesmente porque não gostou, sem submetê-los a opinião alheia. Lembro-me que um dos contos que escrevi quando tinha dezesseis anos serviu de base para um dos capítulos do meu livro. Literariamente, era muito ruim, mas trazia um enredo que foi totalmente utilizado n'O Pianista. Se eu o tivesse jogado fora, provavelmente nem me lembraria da história. Não tenha medo de críticas. Aliás, críticas são muito boas para se saber como determinadas pessoas viram seus textos. Aliás, sinto falta de crítica em Alagoas. Infelizmente, a falta de crítica faz com que muitas obras deixem de ser publicadas nos jornais. Muitas vezes, o jornalista pega uma obra, acha-a ruim simplesmente pela capa e a abandona. Falta coragem para publicar uma matéria sobre um livro ruim, por exemplo, e dizer que ele não presta por isso, por isso e por isso.

*Entrevista veiculada na revista eletrônica Villa Caeté, editada por Eduardo Proffa.