Canção Amiga Para a Minha Mãe

“Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça,
Todas as mães se reconheçam,
E que fale como dois olhos”
(Carlos Drummond de Andrade)


Na casa dos meus pais, a porta do quarto que um dia foi meu se abre para muitos mundos, entre eles o que me fez deixar o velho aconchego para caminhar com as minhas próprias pernas. As mesmas pernas que me fazem voltar sempre na busca de proteção. Hoje, tantos anos passados, revejo os símbolos que um dia espalhei pelo cômodo – e que ainda estão lá, carcomidos pelo efeito inexorável do tempo. À entrada, uma fotografia d’As Quatro Estações – o disco do Legião Urbana que sonorizou a minha juventude – dá as boas vindas aos poucos que tiveram o privilégio de ultrapassar a porta por onde tantas vezes o som do velho violão saiu e ganhou a casa, indo repousar nos ouvidos atentos da minha mãe, que ainda hoje – de tanto me ouvir tocar as mesmas músicas – se pega cantando os versos de Renato Russo:


“Quando o sol bater na janela do teu quarto
Lembra e ver que o caminho é um só”


“Essa música traz sempre você pra mim”, disse-me ela outro dia, com os olhos cheios de saudades e lágrimas. Ainda hoje, quando a vida se inverte, o quarto que um dia foi meu é o lugar onde me sinto mais seguro. É onde fecho os olhos e ouço minha mãe cantar, com a mesma alegria de outrora, a velha canção que me faz seguir adiante. “Dorme agora, é só um vento lá fora”. E todos os meus medos sossegam feito criança que ouve canção de ninar. Quando a vida calha de escurecer, a porta do quarto que um dia foi meu se ilumina pela Canção Amiga, que um dia preguei para embalar meus sonhos, feitos de tantas esperanças.


“Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças”

Todas as vezes, antes de deixar a casa para enfrentar a vida lá fora, releio com carinho a canção do poeta, qual oração a proteger contra infortúnios inesperados. Depois, ao fechar a porta, examino com olhar de ontem a foto do Legião Urbana, como quisesse me despedir de uma adolescência ainda impregnada. Beijo os meus pais e sigo cantando as mesmas músicas que cantei um dia, agora diante do olhar de despedida de minha mãe à porta. “Eu moro na rua/ Não tenho ninguém/ Eu moro em qualquer lugar...”.


Na casa dos meus pais, a porta do meu quarto vai dar direto no coração da minha mãe...

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    # by Eris Oliveira - 12:02 PM

    Impressionante caro amigo! Bela reflexão sobre a importância das coisas que realmente merecem importância. Feliz dia das mães! ;)

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    # by Acássia Deliê - 12:07 PM

    Nostálgico, do que jeito que eu gosto. Para muitos, irrelevantes, são esses pequenos momentos que nos tornam homens e mulheres bons ou maus. No teu caso, a primeira opção. Como diz uma de minhas músicas preferidas, "há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração". E na porta do teu antigo quarto também. Admirável e emocionante o post. Fico feliz em tê-lo desencadeado neste dia das mães..=)

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    # by Anônimo - 12:10 PM

    Nõ consigo terminar de ler, as lágrimas não deixam...
    Ai, ai....muito lindo,
    tu escreve com a alma...além de escritor....tb é um poeta....só q poeta escreve mais com a alma e o com coração do q com a razão.....lindoooooooooooooooo
    chorei...
    Bj, parabén para tua Mãe!

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    # by Paulinha Felix - 4:58 PM

    Belíssimo, Nealdo! Como é bom visitar suas memórias, passear por cômodos, músicas e pessoas através de suas palavras! Fiquei emocionada...

    Um beijo carinhoso!

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    # by Leo Villanova - 12:10 AM

    Quando o tempo passa, descobrimos que o resguardo e conforto estão mais próximos do que sempre pudemos imaginar. Estão dentro de nós, nas lembranças de quando fomos os melhores e mais importantes do mundo - ainda que apenas pra nossas mães.

    Parabéns para a mãe que é digna de uma homenagem como essa.

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    # by Jorge - 9:30 AM

    Bem disse o poeta Cazuza:
    "Só as mães são felizes".

    Parabéns pelo texto.

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    # by Bárbara - 10:37 AM

    Somos seres feitos de carne, ossos e memória. Para mim, não existe lugar mais reconfortante que o colo de minha mãe. Somos mulheres bem diferentes, mas quando eu sento e encosto minha cabeça no seu colo e fico ouvindo as batidas do seu coração, viro uma garotinha novamente, e sinto que naquele momento nada pode me atingir.

    Sua mãe também tem sorte, Nealdo. Um beijo pra você.

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    # by Zóio Comunicação - 3:40 PM

    Os olhos marejados pela alma tocada com sensibilidade! Parabéns!

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    # by Unknown - 4:58 PM

    Por que fui ler isso no trabalho?? Agora estou aqui, segurando o choror, torcendo pra ninguém perceber!

    Andréia Marques

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    # by Lucia - 9:24 PM

    lindo texto!

    ao ler, logo pensei: ♪...nossos discos ainda são os mesmos, e as aparências não enganam não...♪

    tem uma fã!