EPIDEMIA*

Recife, capital de Pernambuco, outubro de 1918.

RUA DO QUEBRA-ROÇO. EXTERIOR. DIA. O carro fúnebre corta lentamente a rua deserta, levando consigo mais um corpo para ser enterrado no cemitério de Santo Amaro. O dia mal começa e já o motorista perde a conta de quantas vezes faz aquele trajeto, apanhando um defunto numa casa qualquer e o despejando em pilha no necrotério até os coveiros darem conta dos tantos mortos que ainda restam para serem sepultados.
O amontoado de cadáveres – muitos deles jogados ali há mais de dois dias – provoca uma fedentina repugnante, afastando do cemitério até mesmo os familiares. A falta de caixões na cidade dá aos corpos um ar de completo desprezo, e quem vê a cena jura que nenhum deles possui um parente sequer. A família que consegue um esquife para enterrar os seus com dignidade, contenta-se com os ataúdes sem forro e com as tampas soltas, uma vez que não há tempo para providenciar esses detalhes.
Mecanicamente, os coveiros vão abrindo as valas e jogando o morto da vez, até cumprir a penosa tarefa de enterrar a todos. Trabalham dia e noite, revezando-se em turnos, porque sabem que no dia seguinte os caminhões e cabriolés despejarão uma nova quantidade de defuntos. Os rabecões já não bastam para tantos corpos. Na rua do Quebra-Roço, o desfile fúnebre começa nos primeiros momentos do dia e, àquela hora, dezenas de carros cruzam toda a sua extensão. Aqui e além, um cadáver é atirado na calçada, o corpo castanho-arroxeado à espera de que a Assistência Pública tome alguma providência.
No final da rua, uma mulher gorda, aspecto cansado, arrasta para fora, aos prantos, o corpo inerte do filho, deitando-o carinhosamente à porta. Com um lenço, enxuga as lágrimas que insistem em cair-lhe, molhando o rosto enrugado e triste. Antes de retornar ao interior da casa, volta a olhar com pesar o cadáver do rapaz, quase irreconhecível. “Foi melhor assim, que seja feita a vontade de Deus”, diz para si mesma, como a querer se conformar pela perda inesperada.
No Hospital Pedro II, os que ainda não sucumbiram à moléstia tentam em vão algum socorro, mas há dias a unidade médica já não recebe ninguém. Criado em 1846, através de lei provincial, o hospital tivera sua pedra fundamental lançada em 1847, sendo inaugurado quatorze anos depois, pelo presidente de Pernambuco, Ambrózio Leitão da Cunha.
O projeto do engenheiro Mamede Ferreira prevê um confortável espaço para cuidar dos enfermos do Recife, mas diante da calamidade que assola a cidade naquele momento, o lugar parece ínfimo. Com isso, dezenas de pessoas se aglomeram diante do prédio, na esperança de ver seus doentes atendidos. O lamento de uns, misturado ao choro de outros, dá ao lugar um aspecto tenebroso, deprimente e angustiante.
Se não é permitido entrar no hospital, o movimento de corpos que sai dele com destino ao cemitério é crescente. São homens, mulheres e crianças que há poucos dias sequer imaginavam o triste destino que os aguardava.


*Trecho do livro O Pianista do Silencioso, sobre a tenembrosa Gripe Espanhola.