Em nome do pai

Educar filhos é uma sequência de despedidas, um adeus após outro”.
David Gilmour, em O Clube do filme

Crie filhos em vez de herdeiros”.
Campanha publicitária do City Bank espalhada pela cidade de São Paulo


Por um bom tempo, David Gilmor foi um aclamado crítico de cinema na Canadian Broadcasting Corporation (CBC). Mas como nada dura para sempre, se viu sem perspectiva quando sua carreira na TV foi por água abaixo. Desempregado, percebeu que o pior ainda estava por vir: Jesse, o filho adolescente, estava indo de mal a pior nos estudos e ele não conseguia fazer nada pelo jovem. Até ter uma ideia arriscada: sugerir ao filho que abandonasse os estudos, desde que assistissem juntos a três filmes por semana, numa espécie de aprendizado através do cinema. Loucura? “E se eu estiver tentando ser moderno à custa do meu filho, deixando que ele arruíne a própria vida?”, questionou em determinado momento. Mas também tratou de responder a si. “Nunca pense na vida quando você estiver na pior. Certamente, seus pensamentos não serão muito bons”. Por isso, tratou de se sentar com o filho para ver filmes como Os incompreendidos, a estreia na direção de François Truffaut – ele próprio um delinqüente que havia abandonado a escola, vivia pelas ruas e era um ladrãozinho nas horas vagas. “Exatamente como você”, ressaltou o pai a Jesse. Tudo isto está relatado em O clube do filme (Intrínseca; 2009; R$ 27,90), o livro que conta toda a história dessa deliciosa relação entre seres humanos e o cinema. “O que surge para o leitor é um belo retrato de pais e filhos, sem retoques – com imperfeições, parcial, repleto de mágoa e afeição”, descreveu a Newsweek. Durante um bom tempo, os dois assistiram a clássicos e a filmes menos recomendáveis – não havia uma lógica para a escolha. Por isso obras como Cidadão Kane, Interlúdio e A Doce Vida estão lado a lado de Showgirls e O massacre da serra elétrica. Em momentos em que Gilmor não se considerava forte o bastante, recorreu à ajuda da ex-mulher – e mãe de Jesse, porque sempre considerou que em se tratando do futuro do filho, os interesses entre pai e mãe são maiores do que os de ex-marido e ex-mulher. Foi assim que, quando tudo parecia estar perdido, decidiram viajar para tentar resgatar o filho à vida. “Naquele mês de junho fomos a Cuba, nós três: Maggie, Jesse e eu. Um casal divorciado passando férias com seu amado filho. Minha mulher, Tina, a única que tinha um emprego fixo, ficou na casa de Maggie. Para quem estivesse de fora, e talvez para alguns amigos maldosos, essa viagem em família deve ter parecido peculiar”. Foi graças ao cinema que o filho – que acompanha o pai à visita que faz esta semana ao Brasil a convite da editora brasileira – teve vontade de voltar aos estudos. Mais: inspirado em Woody Allen – um de seus diretores favoritos – Jesse rodou o seu primeiro curta-metragem, escreveu o roteiro de um longa e se prepara para realizar o filme. Como é natural de um pai, talvez Gilmor algum dia tenha se sentado no sofá da sala, aberto uma cerveja num momento de calor canadense, suspirado fundo e dito para si, com orgulho: “Meu filho está andando com as próprias pernas”. Impossível não se colocar em seu lugar, principalmente quem tem filho. Por isso, baseado n’O Clube do Filme – um livro que se lê de um fôlego só – selecionei alguns filmes que vi com a Isa. E que nos tocou tanto:

A Era do Gelo (Ice Age, 2002) – A história da preguiça Sid, do mamute Manny e do tigre Diego é uma verdadeira lição de amizade entre seres estranhos. E uma prova de que todo ser carrega consigo um lado bom e um lado mau, mas cabe a nós decidirmos qual lado queremos valorizar. Além de proporcionar diversão na tela grande, por muito tempo continuamos com a brincadeira entre Diego e o bebê, quando queríamos estar felizes por nada. “Cadê o bebeeê? Olha ele aqui!”.

Procurando Nemo (Finding Nemo, 2003) – A história do pai que decide nadar em oceano de incerteza para encontrar o filho é talvez uma das obras mais sensíveis do cinema, e nos encheu de emoção por muito tempo. “Pai, esse é um dos filmes mais bonitos que eu já vi”, disse-me a Isa, quando já revíamos o filme um sem-número de vezes. E quer saber? O filme é cheio de grandes lições. Uma delas: “Quando tudo parecer perdido, continue a nadar”.

Desventuras em Série (Lemony Snicket's A Series of Unfortunate Events, 2004) – Um filme difícil para uma criança de seis anos (época em que ela decidiu se sentar ao meu lado para assistir à obra de Brad Silberling. Sofrimento, má sorte de crianças amáveis e incertezas quanto ao futuro não são temas fáceis. Mesmo assim, ela não tirou os olhos da tela. E, como num suspiro de alívio, em determinado momento soltou um “eu amo a minha família”. Até um dia desses, quando queríamos decidir o que comer, ela apontava, à maneira do Conde Olaf, a personagem de Jim Carrey: “refrigerante... refrigerante... banana!”

A Marcha dos Pinguins (La Marche de L'Empereur, 2005) – Eu não estava com a Isa quando ela viu o filme no cinema. “Pai, só lembrei de você”, disse-me quando me encontrou. Antes disso, passou numa livraria com a mãe e comprou o livro baseado no filme. Entregou-me e disse: eu vi o filme e tive vontade de ser pingüim bebê pra você cuidar de mim. Quando A Marcha saiu em DVD, comprei-o e revimos – eu pela primeira vez – a saga dos pinguins imperadores para a procriação da espécie num mundo completamente insólito. Quando o filme acabou, ela me abraçou apertado e disse: “você é o melhor pai do mundo”.

Um Estranho Chamado Elvis (Finding Graceland, 1998) – O que chamou a atenção da Isa para o filme foi o a interpretação de Suspicious Minds feita por Harvey Keitel: “Que música linda, pai!”. E quis saber quem era Elvis Presley. Mostrei-lhe discos, DVDs de show e outros filmes estrelados pelo Rei do Rock. Ela ficou tão fascinada que quis fazer o próximo aniversário com Elvis de tema. Por ela, teria conhecido Menphis montada numa limusine rosa. Vendo-a vestida de Elvis em pleno aniversário, eu me senti feliz pelos sonhos que somente o cinema é capaz de proporcionar.

Lilo & Stitch (Lilo & Stitch, 2002) - Dá pra imaginar um filme de criança com músicas do Elvis Presley? Quem ainda não viu Lilo & Stitch não sabe o que está perdendo, porque além de contar uma história deliciosa – mais uma vez entre seres de espécies e gostos diferentes – a trilha sonora é feita com grandes sucessos do Rei do Rock. Vimos no cinema e saímos dançando com músicas como Heartbreak Hotel. “Pai, o Stitch é feio, mas é lindo”. Ah, é? Então tá!

Em Busca do Ouro (The Gold Rush, 1925) – Na primeira participação da Isa numa competição de ginástica rítmica, ela ficou impressionada com a coreografia de uma escola baseada numa obra de Charles Chaplin. “Que lindo, pai!”. Depois de explicar quem as ginastas estavam homenageando, convidei-a para assistir Em busca do ouro. Ela não só gostou do filme, como quis ver O Garoto, Luzes da Cidade e outros filmes do Chaplin. “Filme mudo é melhor do que filme falado”, comentou. Naquele momento, ela me deu mais uma lição de vida: não há dinheiro que compre a simplicidade.

Wall-E (Wall-E, 2008) – Wall-E é um robô enferrujado, sem perspectiva, vivendo num planeta em que o lixo toma conta de tudo e quase sem a possibilidade de convívio com outro ser da sua espécie. Mesmo assim, quando tudo parece perdido, percebe que tem a capacidade de amar, o que nem todos os seres desfrutam. Impossível não se encantar com a história. “Pai, estou com pena dele”, disse a certa altura. “Ai, que lindo”, resumiu, ao final do filme. E sabe por quê? Porque o amor atinge todos os corações. Até os de lata.

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    # by Pardal - 12:31 PM

    Bonito post.
    Camarada, assino o feed do teu blog há bastante tempo e fico encantado com os poemas que você escreve. É grande! Pois então eu ousei trabalhar com tuas coisas através de um projeto meu chamado Esquadro. Tá lá no site, ok? esquadro.wordpress.com