Acalanto

“Dorme minha pequena
Não vale a pena despertar
Eu vou sair
Por aí afora
Atrás da aurora
Mais serena”
(Chico Buarque)

Antes de entrar em casa, limpou os problemas do dia no capacho. Viu parte deles sujar o “bem-vindo”, maculando o vermelho da tinta. Na casa vizinha, uma mãe embalava o sono da criança com um acalanto. Ele fechou a porta e abriu as lembranças do passado, quando, pequena, a filha dormia ao som dos ninares maternos. Sozinho, deitou na cama e continuou ouvindo a moradora do lado cantar para a criança. Pegaria carona na voz doce da mulher – quem sabe a música não o faria dormir. Olhou para o lado e viu o violão intocável no canto do quarto, quebrado. Deu-se conta de que tinha que deixar o carro na oficina. Mas estranhamente, não sentia falta do carro, estorvo a lhe consumir os parcos recursos de vez em vez. Sentia mesmo era saudade do violão, que costumava levá-lo para lugares distantes – e muito mais bonitos – sempre que dedilhava uma canção.  Prender-se nas cordas do velho instrumento era a melhor maneira de soltar a voz, pensou. E novamente se concentrou na música que invadia sua casa e ia deitar-se em seu ouvido:

Dorme minha pequena
Não vale a pena despertar.
...”

Ouviu o riso da criança e o pedido irrecusável para que a mãe repetisse a melodia. Ele próprio teria implorado outro acalanto, e mais outro e mais outro, até que dormisse profundamente, nuns braços imaginários de proteção. Sentiu saudades da filha, que àquela hora já deveria estar dormindo. Lembrou dos tempos em que a menina lhe pedia para repetir incansavelmente trechos de músicas engraçadas.

“O sapo não lava o pé
Não lava porque não quer...”

Sentiu vontade de ouvir a voz da filha, mas desistiu pelo improvável da hora. Entretanto, mesmo sem estar com ela, repetiu o acalanto – e jurou ter ouvido a menininha rir-se dos trechos engraçados da infantil melodia, como em outrora. E não havia melhor acalanto do que a risada da filha. Pensou nisso e adormeceu. Sabendo que no seu peito batia o coração da menininha ausente.