O Reverso da História*

A construção de uma obra literária, seja um romance, uma novela ou um conto, envolve um complexo processo cuja estrutura engloba não só o procedimento técnico da escrita, mas pesquisas sobre a temática da obra e um mergulho interior feito pelo autor em busca da porção criativa que lhe permitirá construir a ficção. Todavia, junto à imaginação, é possível que vivências do autor apareçam e sirvam de base para a obra na qual ele está trabalhando. Lembranças da infância, sabores, aromas, cenas de uma cidade são algumas das muitas referências que podem estar presentes em um texto literário. São “substituições do mundo real” realizadas “por meio da força criadora da palavra”, conforme diz Antonio Candido, que completa: “Poderíamos dizer que o mundo real está presente com a sua força de gentes, frutas, folhagens, emoções, mas foi refeito no momento da recordação, [...]” [1].
Mario Vargas Llosa também debate essa questão e vai além, ao concluir que:

[...] todos os romances são estruturas arquitetadas pela fantasia e pela técnica com base em certos fatos, pessoas ou circunstâncias que marcaram a lembrança do escritor e puseram em movimento sua fantasia criadora, que, partindo daquela semente, foi construindo todo um mundo, mundo este tão rico e múltiplo que às vezes fica quase impossível (ou simplesmente impossível) reconhecer aí aquele material autobiográfico gerador, e que é, de certa forma, o nexo secreto de toda ficção com seu reverso e antítese: a realidade real [2].

A curiosidade foi o ponto de partida para o nascimento do romance O Pianista do Silencioso. Quando era editor de Cultura do extinto jornal Tribuna de Alagoas, Carlos Nealdo recebeu um disco de Mu Carvalho denominado de “O Pianista do Cinema Mudo”, homenagem que este havia feito para a avó, que era pianista de um cinema onde as fitas sonorizadas ainda não eram exibidas. “Eu ouvi o disco e fiquei imaginando como seria a vida de uma pessoa que nasceu para os bastidores”, conta. “Então, fiquei imaginando um cara que nasceu para ser sombra. Que é percebido, que é delicado, que é gentil como a música, mas é uma sombra. Como seria a vida de uma pessoa que nasceu para não aparecer? Eu sempre perguntei isso”. E conclui: “E a resposta foi sendo construída aos poucos, através de fatos do livro. Por isso, Dago não é um protagonista convencional. Porque ele nasceu para os bastidores” [3].
Após esse estágio inicial, iniciaram-se as pesquisas do autor para elaboração da obra. O ponto de partida foram os arquivos acerca do cinema mudo, que encaminharam o autor para uma esfera mais ampla: a história do Cinema. Ao se sentir satisfeito com leituras sobre a temática, Nealdo iniciou estudos sobre assuntos relacionados à trama que pretendia montar e aos resultados de suas pesquisas. De 2002 a 2004, leu 72 livros, centenas de jornais do período que a narrativa compreende, viu os 39 filmes que intitulam cada capítulo do livro, além dos filmes que são citados ao longo da obra. Em posse de vasto material, resolveu inserir os fatos sobre os quais pesquisou na ficção e, ainda em 2004, dedicou seis meses à escrita do livro.
Assim, a homenagem que queria fazer ao cinema se transformou em um romance que une um enredo ficcional à História, mas sem permitir que tal fusão deturpasse radicalmente os eventos que realmente aconteceram. O autor detalha, em declaração sobre essa relação entre a História e a ficção:

Como se tratam de elementos históricos, a pesquisa tinha que ser muito fiel, porque eu poderia mentir na minha ficção, mas nunca nos fatos históricos. O máximo que eu poderia fazer era pegar um personagem real e dar um tratamento ficcional, como foi o caso da vinda do Al Jolson ao Brasil [i]

A afirmação de Nealdo está ligada a um raciocínio exposto por Mario Vargas Llosa em Cartas a um jovem escritor, no que diz respeito ao aspecto de verossimilhança, que pode “fisgar” o leitor, pois este, ao se entregar à leitura, busca encontrar pontos de proximidade entre a obra literária e aquilo que viveram ou poderiam ter vivido. Llosa reflete:

[...] não é apenas pelo fato de ter um autor que os romances se acham vinculados à vida real, mas também porque se eles, no que inventam e relatam, não refletissem o mundo conforme o vivenciam os leitores, para estes um romance seria algo remoto e incomunicável, um artifício impermeabilizado contra sua própria experiência [...] [ii]

A experiência como jornalista auxiliou o arapiraquense nascido em 21 de agosto de 1970 a percorrer arquivos públicos e sites, selecionar informações em livros e jornais. A infância no agreste alagoano lhe permitiu recuperar imagens “antigas” que só uma cidade de interior possui, bem como a fatia de nordestinidade tão presente na obra. No campo da Literatura, ele iniciou suas leituras com os cordéis apresentados por seu primo-avô, João Caboclinho, ainda na infância. Leu Pavão Misterioso, Manassés e Marili e tantos outros, mais um elemento a favor dos caracteres típicos do Nordeste que estão presentes na obra, em especial no modo de falar dos personagens. Um exemplo é o diálogo entre Xié e o coronel Augusto Cavalcanti, quando o garoto se oferece para recuperar o boi de Cavalcanti, que havia fugido:

- Eita! Eita! Tá feito. Pode ir atrás do bicho.
- Pra que banda ele partiu?
- Deve ter ido pros lados da serra da Caiçara, e pelo desembesto com que partiu, deve de tá em cima do monte, a essas alturas.
- Posso pegar o seu cavalo emprestado?
- Mas tu é abusado mesmo, né não?
- Tô lhe fazendo um favor, coronel...
- Vai, infeliz! [4]

*O Reverso da história – Ficção e realidade em O pianista do silencioso de Carlos Nealdo dos Santos, monografia para a Academia Alagoana de Letras apresentada por Maria Cícera dos Santos e Paula Vieira Felix da Silva.


[1] CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 34
[2] VARGAS LLOSA, Mario. Cartas a um jovem escritor: “toda vida merece um livro”. Trad. Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, p. 20
[3] Declaração dada em entrevista realizada via Windows Live Messenger, em maio de 2010
[4] SANTOS, Carlos Nealdo dos. O Pianista do Silencioso. Maceió: Edufal, 2007, p. 105
[i] Idem
[ii] VARGAS LLOSA, Mario. Cartas a um jovem escritor: “toda vida merece um livro”. Trad. Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, p. 38