O gosto dos outros*

Aos meus trinta e oito anos, e com quatro livros publicados desde meus vinte, me sentei diante da máquina e escrevi: ‘Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo’. Não tinha a menor ideia do significado ou da origem dessa frase, nem para onde iria me conduzir. O que hoje sei é que não deixei de escrever um único dia durante dezoito meses, até que terminei o livro”.
“Pode parecer mentira, mas um dos problemas mais angustiantes era o papel para a máquina de escrever. Eu tinha o mau costume de acreditar que os erros de datilografia, de linguagem ou de gramática eram na realidade erros de criação, e cada vez que os detectava rasgava a folha e jogava no lixo, para começar de novo. Com o ritmo que tinha adquirido num ano de prática, calculei que levaria uns seis meses de manhãs diárias até terminar o livro”.
“Esperanza Araiza, a inesquecível Pera, era a datilógrafa de poetas e cineastas e tinha passado a limpo grandes obras de escritores mexicanos. Entre elas, A região mais transparente, de Carlos Fuentes, e Pedro Páramo, de Juan Rulfo, além de vários roteiros originais de dom Luis Buñuel. Quando propus a ela que passasse a limpo a versão final, o romance era um rascunho crivado de remendos, primeiro em tinta preta e depois em tinta vermelha para evitar confusões. Mas isso não era nada para uma mulher acostumada a tudo numa jaula de leões. Anos depois, Pera me confessou que quando levava para casa a última versão corrigida por mim, escorregou ao descer do ônibus em um aguaceiro de dilúvio e as páginas ficaram flutuando numa poça da rua. Com a ajuda de outros passageiros, ela as recolheu empapadas e quase ilegíveis, e secou-as em casa, folha por folha, com um ferro de passar roupa”.

*Gabriel García Márquez, sobre como iniciou a escrita de Cem anos de solidão; in: Eu não vim fazer um discurso – Rio de Janeiro: Record, 2011.