O prazer da traça

Há pessoas que preferem o mar; outras, um caudaloso rio. Eu prefiro mergulhar em livros – melhor ainda se a leitura for feita na areia da praia ou na margem do São Francisco. Nesse sentido, o ano que passou foi de profundo aprendizado. Gostei da maioria das leituras que fiz. Poucos foram os livros ruins. Mas li-os também, porque às vezes é bom unir o fútil ao agradável. Agosto pra tudo. E janeiro e fevereiro e março também. Abriu um livro? Leia-o. Por ruim que seja. Ao final, você terá, no mínimo, ampliado o seu poder de crítica. Abaixo, relaciono as cinco obras de ficção que me chamaram atenção em 2011 (no próximo post falarei das cinco de não-ficção). Desde já, saliento: difícil escolher as melhores, mas vou arriscar – embora saiba que estarei cometendo injustiças (se alguém por acaso se atrever a ler este texto, peço por gentileza deixar a sua lista num comentário. Prometo publicá-lo aqui, para tentar ser menos injusto). A maioria dos títulos não foi lançada em 2011; algumas se tratam de uma releitura – aquela obra que você se depara ao arrumar a estante e fica com vontade de ler de novo. E por que esperar a vontade passar? Melhor é procurar um lugar legal para se deliciar com a leitura. Gosta de ler na cama? De(le)ite-se. Sofá?  Esparrame-se. Confesso: fico balançado por uma rede. E a minha rede é social: cabe de tudo um pouco:

5º – Cai o pano – Comprei uma caixa com três livros de Agatha Christie por R$ 4,90. Custava quase R$ 100, o que, convenhamos, era vantagem no mínimo financeira. Durante minha adolescência, a escritora inglesa me acompanhou por longas madrugadas, quando devorava aventuras inteiras de Hercules Poirot. Em princípio, comprei por nostalgia dos tempos em que meu pai me mandava apagar a luz. “Já é tarde, você tem que acordar cedo amanhã”, tentava me convencer. Eu achava um crime: a justificativa dele e o mote de mais uma história do detetive com cabeça de ovo. Quando a encomenda chegou, abri a caixa como quem abre a memória. E fui logo em direção de Cai o pano, que é traduzido em português por... Clarice Lispector. Sim, a grande dama do Twitter, citada pela maioria das pessoas que sequer leu A hora da estrela. Reli a edição em dias, como fazia no passado. E cheguei à conclusão de que ler Agatha Christie pela mão de Clarice Lispector não tem preço. Ou até tem, mas custou muito pouco.
Trecho: “Existe alguma coisa pior do que descrever um anticlímax friamente? É como se o amor-próprio da pessoa estivesse em pedacinhos”. (Cai o pano. Agatha Christie. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009).

O segredo dos seus olhos – Os diálogos literais do longa-metragem de Juan José Campanella, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, me fez querer conhecer o escritor argentino, que ajudou, inclusive, na elaboração do roteiro da obra estrelada por Ricardo Darín. Quem viu o filme sabe do que estou falando: diálogos cortantes, frases bem construídas e poesia ao longo de toda a película dão força a este que é um dos grandes filmes argentinos dos últimos tempos. O livro de Eduardo Sacheri é isso e muito mais. Um livro para se ler antes do filme. E depois e depois e depois.
Trecho: “Vamos por partes. Facilitemos as coisas. Começarei em primeira pessoa. Já tenho dificuldades suficientes para ainda ir procurar outras”. (O segredo dos seus olhos. Eduardo Sacheri. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011).

María dos Prazeres – Comprei o livro na seção infanto-juvenil para dar de presente à Isadora, que tem se mostrado a cada dia uma leitora voraz. O livro de Gabriel García Márquez é belissimamente ilustrado por Carme Solé Vendrell e traduzido por Eric Nepomuceno – talvez o maior tradutor brasileiro da língua espanhola e certamente o maior tradutor do escritor colombiano no País. Um leitor atento vai perceber que a história da prostituta que dá nome ao livro faz parte de Doze contos peregrinos – daí minha curiosidade de ler antes (coisa de pai que, certo ou errado, tenta decidir o que é melhor pro filho). Resultado: talvez esse seja um raro – talvez o único – livro infanto-juvenil que a Isa só receberá quando estiver adulta.
Trecho: “Entrou no saguão mal iluminado pelo resplendor oblíquo da rua e começou a subir o primeiro trecho da escada com os joelhos trêmulos, sufocada por um pavor que só acreditava possível no momento de morrer. Quando parou na gente da porta do apartamento, tremendo de ansiedade para encontrar as chaves na bolsa, ouviu a batida sucessiva das duas portas do automóvel na rua. Noi, que havia se adiantado, tentou latir. 'Calado', ordenou ela com um sussurro de agonia. Quase em seguida sentiu os primeiros passos nos degraus soltos da escada e temeu que seu coração fosse arrebentar”. (María dos Prazeres. Gabriel García Márquez. Rio de Janeiro: Record, 2002).

Pedro Páramo – Ao longo de toda a vida, Juan Rulfo lançou apenas dois livros. Um deles, a história da promessa do filho à mãe moribunda, que lhe pede que saia em busca do pai, Pedro Páramo, um malvado e lendário assassino. A obra, lançada originalmente em 1955, é a mais aclamada da literatura mexicana. Dela, Gabriel García Marques falou: “A leitura profunda da obra de Juan Rulfo me deu, enfim, o caminho que buscava para continuar meus livros”. E precisa falar mais alguma coisa?
Trecho: “Senti o retrato de minha mãe guardado no bolso da camisa, esquentando meu coração, como se ela também suasse. Era um retrato velho, carcomido nas beiradas, mas foi o único que conheci”. (Pedro Páramo. Juan Rulfo. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011).

1º – Angústia – Eu havia relido o livro do Graciliano Ramos durante as pesquisas para meu próximo livro, há dois anos. Chamou-me a atenção as frases do escritor alagoano, secas, curtas e tão definitivas. Mas reler Angústia em edição comemorativa de 75 anos não tem preço. Ainda mais porque o livro lançado pela Record, com abertura da neta do escritor Elisabeth Ramos, traz uma fortuna crítica que vale cada centavo gasto (tá, eu confesso: comprei meu exemplar num sebo virtual, por menos de um terço do – alto – preço). Além disso, este ano a obra ganhou significado especial porque conheci o cineasta Sylvio Bach, que levará às telas o único romance não filmado do Velho Graça. Com ele estive em Palmeira dos Índios, há alguns meses, tentando seguir os passos do escritor.
Trecho: “As noites eram medonhas. Os galos marcavam o tempo, importunavam mais que os relógios. E os ratos não descansavam. Enquanto alguns roíam a madeira do guarda-comidas, outros deviam estar lá dentro no armário, devastando os manuscritos, morrendo na literatura”. (Angústia. Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011).