Os pastores da noite

“Acordei muito mais pobre do que ontem”, pensei, esfregando os olhos e afastando da mente os pedaços de presentes que havia ganhado no sonho. O ruim de sonhar ganhando algo é acordar. É como ser contemplado na loteria e perder o bilhete. Senti-me assim esta noite, ao sonhar que uma promoção da Coca-Cola ofereceria milhares de prêmios em várias cidades brasileiras, entre elas a minha. De repente, vi um caminhão cair do céu de paraquedas, recheado de presentes. Havia lido algo antes – não me pergunte onde nem como, porque sonho tem dessas coisas – informando que o veículo seria garantido àquele que encontrasse o copo de vidro com a marca do refrigerante. O que se sabia era que o utensílio tinha sido escondido em algum ponto da cidade. E danou-se a população a procurar. Eu me meti na aventura. E fui encontrando vários outros brindes pelo caminho: relógios coloridos, camisetas da moda, maquiagens – essas tinham destino certo – chapéus variados. De vez em quando, a televisão ligada invadia meu sonho na madrugada, entrecortando a alegria de cada achado com histórias de pastores da noite, a maldizer as mazelas de pobres diabos em busca de salvação. “Seu marido teve um caso com outra mulher e quase destrói sua família?”, quis saber o pastor, entre um achado e outro meu. “Ele trabalhava para ela, se envolveu, teve filhos, e me deixou na miséria, pastor”, contou a mulher. “Tenha fé, a Justiça Divina é maior que a justiça dos homens, minha senhora”, respondeu ele. Deixei a TV para lá e me concentrei na corrida do ouro. Minha mãe apareceu com um presente. Tentei lhe mostrar os achados. “Essas canecas são para você”, me entregou. “Mas eu achei umas bem legais. Além disso, você já me deu essas...”, tentei lhe dizer, lembrando dos presentes que havia ganhado noutro tempo, fora do sonho. “Mas fique, você vai precisar”. Fiquei. E nada do copo especial aparecer. À certa altura, tive sede. E corri até a minha casa. Abri a geladeira e eis que estava lá, majestoso, o copo – já cheio d’água, para aplacar minha sede de presentes. Apareci na rua como quem dá a volta olímpica com o troféu de campeão. Houve queima de fogos. O barulho me acordou. Com sede e mais pobre. Tentei me agarrar à nesga do sonho, mas outro pastor tangeu para longe a minha esperança. Desliguei a TV com raiva. O jeito foi me levantar e ir à geladeira, onde não encontrei nada, nem água. Voltei pra cama frustrado, examinando cada símbolo do meu sonho. E o que aprendi com ele? Que as coisas não caem do céu. Tudo se conquista com trabalho e dedicação; que o tempo passa, e você não vai encontrá-lo em relógios alheios, é preciso fazer algo antes e urgentemente; que tudo o que sua mãe lhe dá é de coração e recheado de amor, importe-se; que Deus é justo e o resto é arremedo; que a mulher que você ama fica bonita com ou sem maquiagem; e que a Coca-Cola não é essa coca-cola toda. Pensei nisso e fui tomar um café forte, numa caneca dada há tempos pela minha mãe. E percebi que não acordara tão pobre assim. Porque café tomado em caneca dada pela mãe tem cheiro de saudade...