Diário de Borda em... Pobreza

Devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu...” Amanheci cantarolando Chico. Não sou romântico. É que sinto falta de um livro. Não sei se já falei, mas sou redator. Desempregado. Ando em itálico, assim, pendido pro lado. Dizem que é de fraqueza. Admito. Estou tão fraco que ultimamente estou participando da cadeia alimentar. Como preso. E hoje acordei me sentindo mais inútil que ventilador de filme noir. Além disso, com uma enorme dor no ombro. Dormir sobre o ombro só é bom quando o ombro não é o seu. Continuo refém das minhas contas. E pior: sem dinheiro para pagar o resgate. Mas tem um lado bom: a falta de dinheiro me faz ser mais criativo. Pelo menos para inventar desculpas para os credores.  Ando tão sem grana que não consigo pagar nem mico. Confesso que tenho inveja de quem nada em dinheiro. E não me chama sequer para um mergulho. Detesto essa gente que é tão rica que até parece que caga dinheiro. Enquanto eu fico aqui, numa prisão de ventre infeliz. Só não me sinto de todo inútil porque ainda posso ser usado como mau exemplo. Sem computador em casa, decidi escrever O Manual do Onanista na pizzaria. Sugestão do próprio dono da Ex-Fome Ado. “Mãos à obra”, disse-me ele, em tom de urgência. Mas posterguei a ideia da escrita ao encontrar o seu Armando à entrada. Armando Pinto, o segurança da pizzaria, que cultiva manias esquisitas. Ele tem um revólver a quem chama carinhosamente de ferro. Ferro de passar. De passar dessa para melhor.  Diz que é bom de mira, apesar de ser cego. Foi contratado depois que o dono da Ex-Fome Ado conseguiu reduzir o salário dele, por isso. Por isso e pelo fato de seu Armando ser analfabeto. Mas ele diz que não vê a hora de aprender braile. É um exímio contador de dinheiro. Já tentei trocar uma cédula falsa com ele. Fui descoberto. Desconfio que tenha sido o papel que usei – um pedaço de jornal velho, que é o único papel que ainda consigo ter em casa. “Essa não é recíproca”, alertou ele. Não entendi. A secretária me explicou que recíproca é como ele chama as notas verdadeiras. De tanto ouvi-la falar que a recíproca é verdadeira. Quando o vi pela primeira vez – nesse quesito estou na vantagem perante ele, que nunca me viu – tentei lhe explicar que ele tinha que exigir os seus direitos. Estavam garantidos em lei. “O problema das leis no Brasil é que elas estão escritas em código”, respondeu o seu Armando. A Justiça é mais cega do que o seu Armando, pensei. E fui falar com o dono da Ex-Fome Ado. Fazia dias que não entregava uma pizza. “Você foi contratado para pôr a mão na massa. Encefálica”, ele me disse. E fiquei pensativo. Fui despertado pelo telefonema do seu Francisco, o peixeiro para quem forneço jornais velhos. Ele queria saber se eu poderia escrever um livro pra ele. Uma obra que contasse as mil e uma maneiras de se tratar peixe. Fiquei de passar lá amanhã. “A Arte da Guelra”. Pode ser que este seja nome da obra. Dependendo do que ele me pagará. Com sorte, minhas próximas sopas de letrinhas terão sabor de lagosta.