Rondó dos Guerreiros

“Guerreiro, cheguei agora
Nossa Senhora é nossa defesa”

A primeira coisa de que o velho Rudá se lembrou quando parou diante da igreja, naquela noite em que lhe minguava uma lua à cabeça, foi da mulher que encontrou um dia, quando ainda era criança, na margem do caminho. Naqueles tempos, chamou-lhe mais atenção o azul da roupa dela – cortado por uma faixa multicolorida de um brilho incômodo que remetia a uma cicatriz de arco-íris num céu sem chuva – do que a fala mansa da senhora com olhos de piedade. Rudá ainda não sabia o que era piedade, mas estendeu a mãozinha diante do pedido irrecusável da mulher. Ela lhe examinou a palma, caminhando com os dedos até o horizonte da mão, traçando o caminho que o menino haveria de seguir ao longo da vida, até chegar ao oceano de vazio que se precipita entre os dedos. “Você irá sofrer de amores”, disse ela, segurando-lhe o indicador, como a querer lhe apontar caminhos. Rudá não entendeu, porque o único amor que conhecia era o dos pais, e ele passava ao largo de qualquer sofrimento. “Mas não tenha medo, porque o coração também é feito de amores desfeitos”, voltou a falar a mulher, depositando em sua mão um delicado anel dourado. “Guarde-o”. Rudá se lembrou das brincadeiras de passa-anel em noites de fogueira no terreiro de casa, quando o crepitar do fogo brincava de estrelas rasantes. “Sua sina é ser brincante”, voltou a dizer, cerrando-lhe a mão e abrindo-lhe os pensamentos. Ele se lembrou das cantigas do Guerreiro Chão de Cacos nas festas de santo que os pais o levavam na cidade:
“Olha, o meu peito é um piano afinado
Minha cabeça é uma caixa de segredo
O coração vive batendo sem medo
E os meus braços não podem ficar parados...”

Naquela idade, Rudá não entendia muito bem o que dizia a música. Metia piano, caixa de segredo e coração num só saco, desses que jazem pendurados na parede da imaginação, a formar quadros desconexos, figuras sem rostos, confusões mil. Mas o verso final o menino não só compreendia como balançava os braços em sinal de aprovação. E foi com o oscilar de braços que ele contou aos pais o encontro que tivera pelo caminho. Os pais pouca atenção lhe deram. “Deve ser uma cigana desgarrada”, disse o pai, sem lhe dar muito valor. A mãe lhe pediu para se afastar de gente estranha. Ele pensou em lhes mostrar o anel, mas teve medo de ter que dar explicações complicadas. Iria se atrapalhar com as palavras, por certo. Preferiu continuar de mão fechada – a imaginação a voltar ao lugar do encontro, a sensação delicada da mulher lhe massageando a mão, a conduzi-lo para o futuro. No povoado, espalhou-se a notícia de que Rudá havia visto uma alma. Os da sua idade queriam saber como tinha sido, pediam – espantados – detalhes, exigiam provas, testemunho vivo; os adultos repreendiam os filhos, maldiziam os pais de Rudá. “Má criação dá nisso”. O fato é que ele cresceu com a cicatriz da intolerância. “Olha o louco”, dizia-se no povoado, quando ele passava, a mão cerrada a carregar o anel. Vagou solitário, seu coração a bater sempre em porta errada – quantos amores vãos! –, até o dia em que o anel lhe coube no dedo. E ele se lembrou da mulher que encontrara no caminho, a lhe guiar o destino. Recordou-se da sina de brincante que ela lhe havia traçado.
(continua) 

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    # by Débora Guedes - 1:59 AM

    Eu amo tu! (Com todo respeito. kkkkk) Quanto mais eu leio seus textos, fico na certeza que não tenho apenas um amigo que escreve. O que tenho na verdade,é um poeta, uma alma que fala através das palavras. Tenho mesmo um amigo que é feito de palavras. As palavras mais lindas que se pode ler.

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    # by Luiz André - 11:18 PM

    Cadê a continuação, rapá?

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    # by Agamenon Magalhães Júnior - 7:32 PM

    Nealdo,


    Tudo certo? Como você está, rapaz?
    Poucas semanas atrás, na escola onde trabalho, indiquei para minha coordenadora seu livro “O pianista do silencioso”. Ela queria presentear com um livro (de autor alagoano) um parente dela que mora em Curitiba. Quando ela me perguntou qual livro seria o melhor para o presente, não tive dúvidas de apontar seu livro. Ela conseguiu um exemplar (com muita dificuldade, diga-se) e o enviou ao parente. O livro foi parar na mão de um jornalista da “Folha de Londrina” que fez um comentário naquele jornal sobre as qualidades do livro e do estilo do autor.
    Eu gostaria de aproveitar esse fato para convidá-lo para dar uma palestra aqui no colégio em que trabalho (www.cnsamaceio.com). Desde o mês passado, eu estou trazendo autores “da terra” para um bate-papo com os meus alunos do 3º ano do Ensino Médio (são 70 estudantes). Comecei esse projeto com o Carlito Lima (www.picasaweb.google.com/108650394171739571287/CarlitoLima?noredirect=1#); como deu certo, estou seguindo adiante com a ideia. Você pode falar sobre seu livro, sobre outro tema ligado à cultura - ou à educação - ou sobre Graciliano Ramos (sei que você é especialista no Velho Graça).
    De qualquer forma, fica o convite. Os alunos são muito bons (modéstia à parte) e, com certeza, vão gostar de tê-lo entre nós.
    Mantenha contato.
    Saúde e paz.


    Agamenon Magalhães Júnior.
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    prof.agamenon@gmail.com