Diário de borda em... Jantar

Sou redator. Desempregado. Ando em itálico, assim, pendido pro lado. Sabe a Torre de Pisa? É por aí. A diferença é que ela recebe milhares de visitas; eu não recebo nada há um bom tempo. Com exceção de cobranças, que me visitam sempre. A situação está tão difícil que já tive vontade de chutar o pau da barraca. Mas cadê barraca? Nem sempre foi assim. Houve um tempo das vacas gordas. Malhadas. Mas deu a louca nas vacas e acabou. As vacas só não foram para o brejo por falta de brejo. Hoje, estou me sentindo mais inútil que os braços da Vênus de Milo. Não sei se já falei, mas meu número de azar é 42. É o número que calço. É que tudo em que ponho o pé dá merda. Inclusive quando piso em merda, que passa a ter um sentido literal. Sentiu o drama? Melhor do que sentir o cheiro, acredite. Acordei desconfiado de que a pizzaria seja uma empresa de fachada. Desde que comecei a trabalhar lá, quase não faço entrega de pizza. Andei sondando com seu Armando Pinto, o segurança cego da Ex-Fome Ado. Ele disse que estou vendo coisa demais. Seu Armando cultiva manias estranhas. Tem um revólver a quem chama carinhosamente de Try. Try Çoeiro. Por via das dúvidas, decidi perguntar a Bebé, a telefonista gaga cheia de mi-mi-mi. Cheia de misericórdia, quero dizer. Descobri que ela tem um sinal na testa, que tenta tirar há anos, mas não consegue explicar aos médicos o que quer sem que lhe desliguem o telefone na cara antes. E o sinal vai crescendo a cada dia. Daqui a pouco, alguém vai ter que tirar a Bebé do sinal. Ela tentou me falar que, de fato, a pizzaria é uma agência de publicidade disfarçada. O dono estava cansado de fazer o arroz com feijão no antigo emprego, e decidiu abrir seu próprio negócio. De quebra, vender pizza. Para não morrer de fome. Chamou um designer de interiores egípcio – um amigo antigo, quase mumificado – para decorar o ambiente. Bebé me mostrou um cartão de visita dele, onde tinha escrito algo como “Decifra-me ou te decoro”. Esfinge, balbuciei para mim. “Ex finge mesmo”, emendou seu Armando Pinto, que ouviu toda a conversa. O segurança da pizzaria tem ouvidos que nunca dormem. Sabe aquela história de que os olhos são as janelas da alma? Seu Armando concorda. Mas diz que ouvidos são a porta. Por onde a alma entra e sai sem pedir licença. Num piscar de olhos. Em agradecimento, convidei Bebé para jantar aqui em casa. Tem um pacote de sopa de letrinhas aberto. É o que dá pra comprar com o que sobra do salário. Eu me contento formando pratos de comida com as letrinhas. Já consegui formar um “magret de pato com risoto de laranjas”. E sobraram muitas letras. Repetidas, é verdade, mas sobraram. É com elas que vou tentar fazer algo para a telefonista da pizzaria. Acho que ela não vai se incomodar. Ademais, ela já está acostumada a comer a-a-a-rroz com-com-com fe-fe-feijão.