Diário de Borda em... Pé-de-meia

– Vovô, vovô...
“Você tem uma missão importante”, disse o dono da pizzaria, depois de arrancar o telefone das mãos da Bebé, a telefonista gaga da Ex-Fome Ado, que ficou sem entender a atitude do outro. O nome dela é Bernadete. O apelido é consequência da gagueira. Fora indicada por seu Armando Pinto, o vigilante cego da pizzaria, que fez o proprietário do estabelecimento enxergar o potencial da moça. “Eu olho e não lhe vejo”, desconfiou o dono da empresa, em princípio. “Já eu nem preciso olhar”, respondeu o vigilante. Seu Armando cultiva hábitos estranhos. Tem um revólver a quem chama carinhosamente de fábrica de sementes. Sementes de gente. Planta uma bala no infeliz e é só semear para nascer uma alma. Bebé deu conta do recado. No singular. Quando é mais de um ela se atrapalha. Por isso o dono da Ex-Fome Ado puxou o telefone das mãos dela, para me contar que um cliente queria criar um anúncio para sua marca de meias, a Shoe Lé. O briefing seria passado pelo próprio cliente – um tal de Pery-alguma-coisa, não lembro –, que me esperava no escritório da empresa, no Centro da cidade. Não sei se contei, mas sou redator. Desempregado. Ando em itálico, assim, pendido pro lado. Sabe a Torre de Pisa? Sou a versão humana dela. Uma versão brasileira meio Herbert Richers, quase uma dublagem sem sincronia. Ando tão fraco que outro dia fui subir no ônibus e tropecei. Por pouco o ônibus não sobe em mim. Preciso descolar grana para comprar comida. Comida, não, sopa de letrinhas, porque meu estômago está tão acostumado com as palavras que estranharia qualquer outra iguaria. Cheguei à loja falando pelos cotovelos, já dando mil ideias para o anúncio da Shoe Lé. Seu Pery me mandou engolir as palavras. Lembrei-me que precisava comprar mais sopa de letrinhas. Mas aprovei a oferta dele e organizei mentalmente algum prato com os vocábulos, antes de engoli-los. O dono da Shoe Lé disse que entendia de publicidade. Chegara a montar uma agência. Âncora, se não me engano. Não saiu do lugar. E ele ficou a ver navios, afundado em dívidas. Foi quando decidiu investir na loja de meias. Primeiro abriu uma unidade na cercania da cidade, a Pery Feria, que faliu em pouco tempo. Ele viu que não dava pé. E se mudou para o Centro. Abriu a empresa com o mesmo nome da marca das meias. Ele me disse primeiro que queria um anúncio sofisticado, com uma imagem belíssima de meia. Elaborei um texto caprichado. Ele aprovou, mas pediu para eu fazer algumas modificações. “O texto vira título. O título você apaga”, ordenou. Depois pediu para eu substituir o título pela foto, o que me deixou sem palavras. Literalmente. Saí da empresa contrariado. E fato é que continuo redator. Desempregado. Para um bom entendedor, meia. (Isso daria um excelente anúncio para a Shoe Lé, pensei, no caminho).