O homem que engarrafou o diabo

Sonhei engarrafando o coisa ruim. Sim senhor. Engarrafando o tinhoso. Botando o capiroto dentro de uma garrafa. Há quem pense que andei bebendo uísque falsificado. Mas confesso que fui dormir de cara limpa, sem gota de álcool na boca. No meio da noite, eis que sonho tomando banho num rio que passava em frente à casa do Jaraguá, ali pras bandas do Salgadinho – que é o cão de tão poluído. Estava lá, entretido com água até o pescoço, quando vejo uma criatura do tamanho de um sagüi mergulhar no rio. Por um instante achei que fosse um Martim-Pescador em busca de peixe. Mas quando o bicho veio à tona, enxerguei uma criaturinha toda vermelha: olhinho encarnado, rabinho comprido e as pontas saltando das orelhas, porque esse negócio de chifre que sai da testa é coisa de corno, segundo me informou um amigo, quando lhe contei do sonho. “Eita bicho feio do cão!”, pensei comigo. Ele soltou um sorriso amarelo e atalhou: “Do cão não senhor, que eu sou lindo”.


Nesse momento o meu vizinho apareceu e disse que eu estava lascado, porque quem vê o mofento está predestinado a sofrer a vida inteira. “A não ser que o prenda numa garrafa”, sentenciou. Achei que o vizinho estava lendo cordel demais, mas como se tratava de um sonho – e no sonho a gente não sabe o que é verdade ou mentira – tratei de elaborar um plano pra engarrafar o rabudo. Então pensei: “Esse condenado deve estar com uma fome do demônio!”. Providenciei uma tartaruga de cera e assentei-a dentro d’água (não me pergunte onde diabos eu fui arrumar cera. Era sonho, e sonho pode tudo, até engarrafar o treloso). E por que a tartaruga? Não sei. Vai ver que meu raciocínio estava lento. Pensei que se fizesse um peixe de cera, ele ia ficar lá no fundo do rio, e como peste eu iria pegar o galhudo, nas profundezas das águas turvas? No que eu botei a tartaruga no rio, o chifrudo mergulhou para agarrá-la. Foi com tanta força que se enfiou na carapaça do bicho e ficou preso em seu corpo. Aí foi fácil pegar o beiçudo. Puxei o bicho pelo rabo e segurei-o numa das mãos. Os espetos das orelhas me furando os dedos e eu quase mandando ele pro quinto dos infernos. Não mandei porque seria premiá-lo, mandando-o de volta pra casa. E o vizinho, que se chama Leão e pelo jeito era fera em assunto arrenegado, disse: “Agora é preciso encontrar uma garrafa pra enfiá-lo boca adentro”. Eu pensei numa PET. Entrei em casa atrás de uma. Mas foi entrando com o chavelhudo na mão e o vizinho gritando da porta: “Agora lascou tudo! Você não podia entrar com o fioto dentro da sua casa não. Agora ele não vai mais querer sair”. “Oxe, e esse rola-bosta é capeta ou vampiro?”, espantei-me com a crise de identidade do futrico. Sim, porque eu sabia que vampiro era que não podia ser convidado a entrar porque, uma vez dentro, tascava os dentes no cangote da vítima e aí já era. “Pelo menos procure uma garrafa resistente, porque de plástico o coisa ruim rasga no dente”, foi logo atalhando o vizinho.

O pior é que em casa não tinha sequer um vasilhame de cerveja. Até tinha, mas achei que seria demais contemplar o cão com o cheiro de Bohemia. Desisti. Mas não por isso. O traste é que tinha a cabeça grande, não passava pelo gargalo. A solução foi botar o infeliz num frasco de café solúvel. Entretanto, toda vez que eu ia fechar o vidro, a tampa ficava menor que a boca. Eu tirava o cão de dentro e a tampa voltava a ficar do tamanho normal. Pensei até em ganhar dinheiro com o capeta, me passando por mágico. Mas como não queria negócio com o Essência de Enxofre, tratei logo de arrumar outro vidro, no que passei o dia todo. Já estava cansado, com a mão doendo de tanto apertar o pescoço do bicho, quando encontrei um preto velho - desses que a gente encontra em História de Trancoso.”Ih, misifio! Tua penitência vai ser segurar o cão pro resto da vida”, sentenciou. “Que inferno!”, pensei. “Mas tem solução”, falou, soltando uma baforada do cachimbo. “De noite ele perde as forças. De dia é que é loita. Misifio vai ter de trocar o dia pela noite, se quiser sossego. Vai ter de se ocupar em brincar com o fute a noite toda, pra que ele perca as forças...”. Foi ele dizendo isso e eu me acordando, ainda sentindo dores na mão. Por via das dúvidas, não voltei a dormir. E desde cedo tenho pensado nas brincadeiras que terei de inventar para passar as noites.

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    # by Paulinha Felix - 5:50 PM

    Começo rindo, termino rindo, sem medo.

    Tu mexe até com o "outro"!! Pra tuas palavras, não tem coisa ruim mesmo! Adoro!!