Como a cigarra
Um dia meu pai chegou em casa segurando Mercedes Sosa pela mão. Era hora do almoço e ele reclamava do dia difícil que estava tendo. Pouco dinheiro, muito trabalho e o rosto cheio de suor. Mas a mão de calos segurava firme a cantora argentina. Eu devia ter uns doze anos. Ele sentou-se, retirou cuidadosamente a circunferência preta da embalagem e a pôs no toca-discos. Imediatamente, a música invadiu a sala, misturando-se ao cheiro de comida e embalando a fumaça dos pratos, num bailado sedutor e suave. “Tantas veces me mataron/ Tantas vezes me morí/ Sin embargo estoy aqui resucitando/ Gracias doy a la desgracia/ y a la mano com puñal/ Porque me mató tan mal/ y seguí cantando”. Como uma música que nos leva a passear ao passado, a presença da cantora Argentina em Maceió, recentemente, me remeteu a sala da velha casa, vendo meu pai sentado à mesa ouvindo os versos de Como La Cigarra, igual soldado que volta da guerra e reencontra a família. Infelizmente não pude ir ao show. Imaginei que se fosse ao espetáculo da Marcedes, passaria pelo menos dois meses andando de ônibus, para reequilibrar as finanças. Em época de recessão, o meu salário só consegue pagar, no máximo, show de Fusca. Se o Fusca for de 1978 para trás. Com esforço, poderia juntar os tais 200 reais da entrada. E com sorte, La Sosa cantaria Como La Cigarra. Mas a realidade não me deixava sonhar. Preferi cantar a música na mente e lembrar meu pai, que depois do almoço sentava-se na sala ainda ouvindo o disco e contando o “apurado” do dia. Feita as contas, soltava um suspiro de alívio. O dinheiro daria para as obrigações. “O artista enverga, mas não quebra”, dizia ele, com sorriso de menino, lembrando dos mocinhos das fitas que a gente via nas matinês do cinema. Eu ficava pensando naquela frase sem entender muito, enquanto ouvia os versos da canção argentina, que só viria compreender também mais tarde. E ainda hoje, ao ouvir a música de Mercedes Sosa, imagino meu pai como a cigarra da velha canção: “Cantando al sol/ como la cigarra/ después de un año/ bajo la tierra/ igual que sobreviviente/ que vuelve de la guerra”.
This entry was posted on 26 de novembro de 2008 at 1:04 PM. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.
# by Anônimo - 2:40 PM
É isso mesmo, amigo. O artista enverga. Mas, olha, ele quebra sim, não quebra? Quebra. Quebra e sabe-se reconstruído na arte. É ou não é?
# by Anônimo - 3:10 PM
Mas chora esse rapaz...
Recordações adormecidas com cheiro e som de infância são muito gostosas de sentir.
Gostei do texto, maleta. Faça-nos o favor de não parar mais de escrever. Pode ser ou está difícil?!
Onde posso colocar a moeda? Naquele canto não, doido!!
muitos risos)
# by Yvette Maria Moura. - 1:46 AM
as cortinas se abriram e lá estava ela, no centro do palco, vestida de preto e vermelho, sentada em uma poltrona branca.
soltou a voz e cantou "Como La Cigarra" (também a minha preferida)...
eu fui!
e posso te dizer que foi "inolvidable".
# by Yvette Maria Moura. - 1:54 AM
as cortinas se abriram e lá estava ela, sob o foco de luz, trajando rubro e negro, em uma poltrona branca.
olhou a platéia, soltou a voz e cantou "Como La Cigarra" (também a minha preferida), acredita?
eu fui!
e posso te garantir que foi
"inolvidable".
.
besos.
MM.
# by Unknown - 1:01 AM
Parabens
gostei muito de seus texto e a prinmeira vez q acesso e leio este tipode assunto
qual seu endereço de e-mail
q faz
# by Carlos Nealdo - 11:05 AM
Caro Frei,
Obrigado pela visita. Volte mais vezes. Meu e-mail é cnealdo@gmail.com
Caro Pardal,
De fato, o artista enverga e quebra, mas tem o dom de juntar os fragmentos e seguir em frente. Valeu pela visita.
Yvette,
Mercedes Sosa é ouro, incenso e mirra...
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