Concha Acústica

Henri Cartier-Bresson

A minha primeira experiência inesquecível com música aconteceu aos 14 anos, quando o João – hoje oficial da Polícia Militar – teve a idéia de homenagear os professores da escola onde estudávamos. Naquela época, estávamos descobrindo o mundo e nada era impossível para os nossos sonhos juvenis. Extremamente tímido, eu dividia o meu tempo entre os estudos e a leitura de O Bosque das Ilusões Perdidas, de Alain-Fournier – ainda hoje um dos meus livros preferidos – que conta a passagem da infância para a adolescência e a conseqüente descoberta do primeiro amor. A idéia do João era criar algumas paródias para cantá-las no dia 15 de Outubro. Em meados de 1980, grupos como Menudos e Dominó faziam a cabeça de nove entre dez meninas da nossa escola, razão pela qual optamos por criar um conjunto semelhante. “Que nome daríamos?”, eu quis saber. “Barazó”, respondeu o futuro PM. “Barazó!?”, insisti. “É. Barazó. A mistura de baralho com bozó”. Qual seria o louco que toparia fazer parte de um grupo que se chama Barazó? Apareceram dois, o André e o Gilson, que embarcaram na brincadeira e dias depois estavam ensaiando conosco. Resolvemos dividir o trabalho: o João cuidaria do lado empresarial do grupo; eu ficaria responsável pela elaboração das paródias; o André cuidaria do som; e o Gilson – o mais bonito da banda – assumiu o papel de galã, com as meninas todas loucas por seus cabelos de anjo. “Capelinho de Lomprica”, como costumava chamá-lo uma menina encantadora que trocava o “b” pelo “p”. Decididas as funções, tratamos de arrecadar dinheiro para comprar o figurino da banda. Fizemos rifa, livro de ouro, passamos a sacolinha nas turmas do colégio. Ao final, a grana deu apenas para comprar o tecido. “Minha mãe é costureira”, lembrou o André. Estava resolvido. Mas você sabe como é mãe, não? Eis que caprichou na roupa do filho e, como o tecido tinha sido comprado a conta, tivemos que nos contentar com calças apertadas – que nos dificultavam os movimentos – e curtas. “A gente diz que é estilo”, sugeriu o João. Ensaiamos à exaustão. No Dia do Professor, pátio do colégio cheio, cartazes em cartolinas espalhados por tudo o que é lugar, a diretora anuncia a apresentação do grupo. Subimos ao palco todos de branco. Mas o André, que ficara responsável pelo som, esquecera de checar a qualidade do áudio e não se deu conta de que o gravador tinha “comido” a fita. Ficamos estáticos por dezenas de segundos. “O som, André!”, sussurrava o João. Nada. Fomos socorrido por um dos professores que, percebendo a nossa aflição, revolveu o problema do áudio. Na terceira música, nos demos conta de que todo mundo olhava apenas para as nossas canelas. “Deve ser as calças no meio da canela”, pensei. O professor que ajudara no som foi quem nos alertou, entre uma canção e outra: “Bicho, o André é o único que está de meias vermelhas, e está chamando a atenção de todos”. Ficamos envergonhados. Principalmente porque todas as nossas paqueras estavam ali, diante do palco. Todas, menos a do João, que não havia demonstrado interesse por nenhuma das meninas que acompanharam os nossos ensaios. Ao final da apresentação, soubemos o motivo. Antes que a diretora chamasse a próxima atração, ele tomou o microfone: “Queria prestar uma homenagem a uma pessoa muito especial e que eu admiro muito”, falou. Os outros do grupo se entreolharam. “Quem será a garota?”, questionou o Gilson. Mas antes que a gente tirasse conclusão precipitada, o próprio João tratou de revelar o mistério: “Essa música vai para a minha professora de Português”. E emendou com a música Tímida à capela: “Lábios com sabor de hortelã/ Olhos cor de céu pele de maçã/ Sonho de mulher se descobriu...”. Silêncio geral. “O filho da puta ‘tá cantando a professora diante de todo mundo!”, assustou-se o André. “Será que ele já a beijou?”, eu quis saber. “Acho que não”, respondeu o Gilson. “E essa história de lábios com sabor de hortelã?”, contraataquei. Diante do palco, a professora se mostrava extremamente tímida. “Pelo menos no título da música o sacana acertou”, falou o André. Ao final da canção, choravam o João e a professora. E até hoje, passados tantos anos, duvido que não houvesse um quê de cumplicidade naquelas lágrimas...

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    # by Paulinha Felix - 11:53 AM

    hahahahahahahahaha

    Ainda bem que fomos crianças e adolescentes!! O que seria de nós se não tivéssemos passado por isso?

    Não vou mentir que estou te imaginando em passinhos estilo Menudos, com uma calça "coronha" e apertadinha =X

    =*

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    # by Anônimo - 12:17 PM

    Eu tive uma banda, aos vinte e poucos anos. Eu tive amigos que tocavam comigo. Eu tive amigos que me tocavam a alma. E hoje, olhando pra trás, vejo como eram felizes esses momentos. Seu texto me emocionou. Parabéns. E obrigado.