Velha infância

Nada melhor do que encontrar por acaso um grande amigo de infância que você não via há muitos anos. Quando o meu irmão entrou na casa dos meus pais trazendo o Ciale, meu coração fez uma viagem no tempo, levando consigo um monte de malas cheias de saudade. Passamos os primeiros anos de nossas vidas juntos, ora eu freqüentando a casa dele, ora ele freqüentando a minha. Nossas mães tinham um carinho especial um pelo outro, o que nos dava uma sensação mágica de termos duas mães. Mas a vida quis que trilhássemos caminhos diferentes. Ao reencontrá-lo já maduro, foi inevitável não trazer à tona todas as pessoas queridas que foram ficando pelo caminho. Quando ele se aproximou para falar com minha mãe, percebi no olhar de ambos o carinho com que se tratam mãe e filho. Havia um mundo mágico ali. Um pouco abatido por acontecimentos que lhe deixaram temporariamente com olhar triste, ele mantém a calma e a serenidade de menino. Claro que fomos comemorar o reencontro num bar: eu, ele e o meu irmão. Por não ter luz elétrica, o ambiente estava vazio, o que contribuiu para deixar o lugar ainda mais cheio de nostalgia. “Vocês se incomodam pelo fato de estar faltando energia?”, perguntou educadamente o garçom. “De jeito nenhum. Até porque eu vim aqui pra tomar cerveja, e não pra tomar choque”, respondeu meu irmão, gaiato como sempre. Entre uma gracinha e outra do Roberto, fomos trazendo de volta a nossa infância, até chegarmos aos jogos com bolas de gude. (Exímio jogador, o Ciale era admirado por todos os outros meninos quando se tratava desse jogo. Formavam-se plateias para vê-lo disputar “campeonatos”). Como não tinha habilidades com as esferas multicoloridas, eu participava da brincadeira “financiando” o meu amigo. Comprava as bolas de gude e entregava a ele, para jogar contra outros garotos. Ao final, na casa de um ou de outro, sob o olhar atento de nossas mães, dividíamos o resultado do jogo, felizes. E continuamos assim por muitos anos, até aparecer a Soninha, uma menina linda, que tinha um olhar tão verde e tão brilhante que pareciam duas bolinhas de gude recém-compradas (na época, minha imaginação de menino só conseguia comparar seus olhos a bolas de gude). Vimos todas as bolinhas de gude escorrerem entre nossos dedos quando nos demos conta de que ambos nos apaixonamos. No íntimo, porém, eu sabia que o Ciale levava uma grande vantagem. Loiro, bonito e extremamente comunicativo, ele cativava em questões de minutos. Ao contrário, eu me fechava cada vez mais em timidez, o que dificultava o acesso a qualquer pessoa. “A Soninha fazia minhas tardes parecerem um parque de diversão”, disse ele no bar, com um olhar de ontem. “Mas caí da roda-gigante quando ela me deu um fora”, completou, antes de levar o copo à boca, como se quisesse engolir com cerveja o mal-estar. Meu irmão tentou filosofar, para dar rumos alegres à conversa: “A vida é que nem rapadura. É doce, mas também é dura”. Na época, quando soube do fora que ele havia levado, me retraí ainda mais. “Se ela não quis namorar o carinha mais comunicativo da escola, não deve sequer ter me notado”, pensei. E continuei a admirando de longe por muito tempo. Quando estava prestes a mudar de escola – e percebendo que talvez nunca mais a visse – criei coragem e a convidei para a festa de despedida da turma. “Ah, você fala”, brincou ela. E me calei ainda mais. “Eu sempre quis receber um convite seu”, completou ela. E naquele momento, eu voltei para casa de montanha-russa...