Sísifo reinventado

 
Ainda me impressiono muito como as pessoas desistem fácil das coisas: um emprego monótono, um relacionamento rotineiro, um curso meia-boca, um projeto em que se acreditava bastante... A desculpa é evidente: não sou eu, é ele. Isso me faz lembrar o Mito de Sísifo, aquele ser humano que, como punição divina, fora condenado a rolar uma grande pedra até o cume de uma montanha e, claro, toda vez que estava quase alcançando o topo, a pedra rolava morro abaixo e ele era obrigado a recomeçar tudo de novo, num esforço sem fim. A história pretendia nos dizer que devemos sim, cuidar de nossa rotina, mas sendo criativos justamente na repetição e na monotonia. Um prato de feijão com arroz, por exemplo, pode fugir da trivialidade dependendo da nossa fome. Ou não? As artes estão cheias de mitos de Sísifo. No meio do caminho, de Carlos Drummond, é um belíssimo exemplo disso. E a representação é feita com esmero, ao narrar em versos repetitivos a rotina do semideus, dando a sensação de que estamos rolando – sem que nos esqueçamos nunca – a nossa pedra seguidas vezes:

 “No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
”.

O que o poeta quis dizer – e isto é óbvio – é que a nossa existência é feita de fardos. E que não devemos nos esquecer deles. E carregá-los faz parte do nosso processo de crescimento. A vida não é um hobby, em que depois de enjoarmos dele, podemos abandoná-lo em busca de outro divertimento, e mais outro e mais outro e mais outro, numa sucessiva troca de prazeres finitos. Nem sempre a vida é um estourar de Moët & Chandon. Nesse sentido, A Partida, o filme do diretor Yojiro Takita, talvez tenha sido o que melhor me traduziu o mito de Sísifo. (Verdade que muitos torceram o nariz para o longa, que desbancou favoritos ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2009. Mas isso não tira o seu mérito. Pelo contrário, mostrou ser capaz de deixar para trás grandes filmes). A obra, que conta a história de um violoncelista que volta à cidade natal depois que a orquestra onde toca é dissolvida, é a interpretação de Sísifo em versão moderna – mas também em versão milenar, já que se baseia numa tradição japonesa. Depois de voltar à sua cidade – ou seja, às suas origens, ao ponto de partida, ao recomeço –, a personagem começa a trabalhar embelezando defuntos em uma agência funerária. Por si só, isso já seria uma belíssima metáfora para tratar da morte como recomeço. Mas o nosso homem não para aí. Ele traz uma pedra consigo. Literalmente. E é esta pedra que vai definir o seu futuro – porque o espectador vai perceber que o objeto-pedra havia impregnado todo o seu passado. A questão do filme é: livrar-se dela ou seguir com ela até os últimos míseros dias da sua vida? Essa decisão irá influenciar todo o resto da sua existência. Aí eu pergunto: e você? Continuaria, como Sísifo, tentando rolar a pedra até o topo ou iria desistir no meio do caminho?

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    # by Débora Guedes - 5:00 PM

    Ousar. Eis o verbo que define o perfil das pessoas realmente realizadas. Em nossas conversas virtuais, onde eu insisto em entrevistar o entrevistador,ou seja, você, vejo em ti a marca da ousadia. O menino que desafiou o diretor do jornal e escreveu um texto sobre política. O menino que ousou fazer de tudo um pouco por amor ao cinema. O menino, que ousou escrever um livro em um país de escassos leitores.
    O menino que ousa mostrar para o mundo o amor que tem pela filha quando a maioria das pessoas sentem vergonha de amar.

    Este é você. Com muitos versos e prosas.