Infância no lixo

Eu devia ter uns 12 anos quando ouvi falar de Graciliano Ramos pela primeira vez. Minha mãe era serviçal de uma escola pública no interior de Alagoas quando isso aconteceu. Eu tenho orgulho da minha mãe ter sido serviçal escolar, principalmente depois de ter passado por cozinhas de endinheirados e perdido parte da saúde em armazéns de multinacionais fumageiras, destalando folhas de tabaco que virariam charutos na boca de grã-finos – aqui e fora daqui. Foi com o trabalho de serviçal que ela e o meu pai – um retratista do interior do estado – conseguiram criar seus filhos. E deve dar um orgulho danado aos dois olharem pra trás e ver que conseguiram educar 4 filhos da melhor forma possível. Guerreiros, os meus velhos. Mas eu ia dizendo que me orgulho de minha mãe ter sido serviçal em escola púbica – numa época em que dava orgulho ser estudante de escola do governo. Um dia, quando ela varria o pátio da escola em que trabalhava, encontrou no lixo uma edição primorosa de Infância, do Mestre Graça. Não pensou uma vez: foi logo devolver o volume à Biblioteca. “Lugar de livro não é no lixo”, lembrou outro dia, passadas tantas décadas. “Não, a gente pôs no lixo mesmo, não serve mais”, ouviu da bibliotecária. Apesar de ter feito somente a quarta série primária – correspondente ao quinto ano do Ensino Fundamental atual – ela sabia que não estava certo jogar um livro no lixo. “Posso levar para casa?”, perguntou à (ir)responsável pela Biblioteca. “Se você quiser...” , ouviu da mulher. Ela levou. E nessa hora eu imagino a minha mãe, cansada depois do expediente de limpeza, com Infância debaixo do braço, a caminho de casa. Quando ela me entregou o livro com um sorriso no rosto como quem dá o melhor presente ao filho – e ela estava me dando o melhor presente – eu tratei logo de abrir o livro, porque sabia que de alguma forma ela estava me entregando algo muito raro, dado o amor com que ela estendeu o volume para mim. “A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta”, foi o que eu li pela primeira vez – e imediatamente fui descobrindo o universo mágico do lapidador de palavras que é Graciliano. Esse episódio não foi a primeira coisa que guardei na memória. Mas o livro – eu que trago comigo até hoje, tal relíquia herdada de quem a gente ama – foi o primeiro exemplar que guardei na minha estante. Ainda hoje, quando quero recorrer a alguma obra do Mestre Graça, é o exemplar de Infância – tirado do lixo por alguém que quase não teve estudos, mas sabe o que é educar um filho com muita sabedoria – que miro primeiramente. Outro dia – agora há pouco – eu quis saber da minha mãe o que ela achava de Monteiro Lobato: “Um país é feito com homens e livros?”. “Não sei, meu filho. Pergunta difícil assim, não é fácil responder. Eu acho que tudo, inclusive um país, é feito com amor. Seja ele para quem for: para alguém, para você ou para um livro”. 

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    # by Débora Guedes - 8:44 PM

    Sua mãe foi de uma sensibilidade poética ao falar que do país aos livros, todos devem ser construídos com amor.