Os pequenos milagres

A vida é feita de milagres. Pequenos e grandes. Raramente notamos os grandes; os pequenos, então, nem se fala. No ano 2000, eu tive a oportunidade de presenciar dois deles. Ambos imensos. O primeiro veio em forma de vida e se chamaria Isadora; o outro chegou sob a ameaça constante da morte e lutou alguns meses no ambiente frio de uma UTI. Naquela época, pouco tempo depois de saber que eu seria pai de uma menina, meu pai sofreu um acidente vascular cerebral e foi desenganado pelos médicos. Transferido do interior para a capital sem resistência alguma, passou longos dias internado, imóvel, sem responder aos sinais. Eu e minha mãe revezávamos nas visitas. E eu me assustava com os prognósticos médicos, nada favoráveis ao paciente. Então usei o primeiro milagre para tentar alcançar outro. Todos os dias, ao entrar no triste ambiente da UTI, eu me aproximava dele, alisava sua cabeça e recitava minha oração diária: “O senhor vai ficar bem, vai sair daqui, verá sua neta nascer, crescer e brincará muito com ela”. Eu queria acreditar que assim seria, mesmo fazendo o trajeto do hospital até em casa chorando, incrédulo. Mas buscava forças na minha filha, que crescia na barriga da mãe, para repetir a oração na UTI. “Minha filha vai brincar com o meu pai, eu sei que vai”, tentava me animar. Meu pai sobreviveu. Mas a doença deixou sequelas definitivas em seu corpo e alma. Uma delas – e talvez a responsável diretamente pelas demais – provocou a incapacidade de trabalhar, um dano imensurável para quem era acostumado à labuta diária, fazendo o que mais gostava: fotografar. Quando criança, eu gostava de ver o mundo através dos olhos do meu pai, bisbilhotando os slides que ele colecionava sobre a mesa da cozinha, separando os fotogramas por clientes. Sentado à mesa, meus olhos de menino visitavam famílias estranhas, festas alegres, velórios e casais felizes. Gostava de ver meu pai separando os slides, pondo-os nos monóculos e, quando calhava de ter mais de um de um mesmo cliente, amarrando-os com um barbante fino, transformando as fotografias em cachos de lembranças. Com a doença, meu pai perdeu o gosto pela fotografia e por outra série de coisas pelas quais antes era apaixonado. Anda e fala com dificuldades e nunca sai de casa. A maior parte do tempo, a vida lhe chega através da programação televisiva que, rotineiramente, inclui muitos telejornais, algumas novelas e raríssimos filmes, programação que há mais de uma década ele acompanha sentado sempre no mesmo lugar. Devido à dificuldade da fala, já não atende mais o telefone. Quando ligo para minha mãe, peço para falar com ele, mas ele se recusa. E chora. Eu entendo e não insisto. Sei da vontade que ele tem de conversar. Mas sei também da sua limitação. Ontem, ao sair do trabalho, liguei para a casa dos meus pais. O telefone chamou diversas vezes. Imaginei que ele estivesse só por um instante e, por isso, não iria atender. Estava quase desistindo quando ouvi um “alô” do outro lado da linha. E reconheci a voz do meu pai – tão clara que iluminou minhas lembranças, entre elas a da vitória alcançada contra a morte, há mais de dez anos. Ele chorou do outro lado da linha. E somente depois de desligar o telefone, me dei conta de que tinha presenciado um pequeno milagre. Porque a vida é feita de milagres. Pequenos e grandes.

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    # by Sr. Apêndice - 8:29 AM

    Pequenos e grandes milagres. Se a vida não é feita disso, não sei do que é... Belo texto, linda história. De encher os olhos de lágrimas... Abraço

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    # by Cris Calaça - 10:03 AM

    Uma lágrima. Uma lembrança. Um milagre. Muitos sorrisos.

    Saudade do nenéo.

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    # by Luiz André - 11:09 AM

    Belíssimo texto, meu amigo!

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    # by Débora Guedes - 2:30 PM

    O teu blog é uma casa feita de letras, onde é possivel entrar, ler, emocionar e depois voltar com a certeza de encontrar lindas histórias tecidas com o mais sublime dos sentimentos: O amor.

    Você é uma criatura de uma alma linda!

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    # by Agamenon Magalhães Júnior - 6:12 PM

    Nealdo,
    Há algum tempo, venho acompanhando seu blog. Parabéns. Sou também um apaixonado pela Língua Portuguesa e a veja aqui tratada da melhor forma. Seu estilo simples e impecavelmente enxuto é surpreendente.
    Já usei dois textos seus com meus alunos e eles adoram (reclamaram só que você atualiza pouco seu blog).
    Estarei sempre por aqui.
    De novo, meus cumprimentos pelos belos textos.
    Agamenon.