Linhas tortas

Graciliano Ramos era um exímio apreciador de cachaça. Não raro, costumava escrever com uma garrafa de aguardente sobre a mesa. Os frequentadores do Bacurau – o bar encravado no centro de Palmeira dos Índios – geralmente flagravam o autor de S. Bernardo em uma experiência excêntrica: com um cigarro entre os dedos amarelecidos, depositava um punhado de açúcar sobre a mesa, sorvia um gole de aguardente e tocava os cristais minúsculos com a brasa da bagana, fazendo levantar um cheiro mesclado de melaço e fumo. Sabe-se lá o que o escritor queria evocar com tal experiência – quem sabe sua Viçosa de tempos idos, povoada de engenhos. Confesso impotente que sempre desejei ser tão bom quanto o mestre Graça. Mas na impossibilidade de alcançar tal intento literário, me contentei em escrever sob o efeito do álcool. Porque, no final, todo bêbado se iguala – nem que seja na sarjeta. Sei lá! O fato é que se Deus escreve certo por linhas tortas, quem sabe, bêbado, eu não escreveria torto por linhas certas. No fundo, no fundo – de uma garrafa, vá lá – todo ser humano é uma espécie de deus às avessas. Então, nessas horas o melhor é se vestir de divindade e dar vida a criaturas irreais. Foi assim quando inventei de dar à luz personagens como Dago, Biana, Xié e toda a fauna d’O Pianista do Silencioso. Não sei quantas garrafas bebi – não foram muitas, vou avisando logo ao leitor, que talvez se frustre com inexpressivo volume. Mas dizem que bebida é feita para apreciar amigos. Se assim for, as personagens do meu livro foram as melhores companhias. Por isso, quando eles foram embora, ao longo de seis meses de escrita diária, eu fiquei triste. Mas abri a última garrafa de vinho para brindar a alegria com que me receberam no seu mundo fictício. Quem sabe um dia eu devolvo a visita, frequentando o mundo deles. Quiçá para sempre. 

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    # by Débora Guedes - 8:33 AM

    Se fizeres mais uma visita àqueles personagens, peço que traga em um segundo volume mais de Biana, Xié e Dago. Mas se tua visita estiver pautada apenas na saudade e nas lembranças, peço que as escreva por aqui, para que nós, simples leitores, tenham o prazer de acompanhar os devaneios de um escritor.

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    # by Agamenon Magalhães Júnior - 7:37 PM

    Eu já tinha notado semelhanças entre seu estilo de escrever e o de Graciliano Ramos. Até aí tudo bem... tenho duas dúzias de colegas escritores que também são discípulos do mestre Graça. A diferença entre você e os outros é a sua impressionante capacidade de colocar nos textos a emoção exata, como fazia o autor de “Vidas Secas”. De novo, parabéns. Agamenon.

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    # by Arquilene - 10:00 AM

    Ih, ele bebeu! (risos)
    Saudades do Graça... Tá, de lê-lo, nunca o vi mesmo.