Páginas reviradas

 “Porque, no final, a gente sabe que todas as músicas que se ouviu e todos os livros que se leu ficam guardados no coração”.

 (Carlos Diegues)
Peixinho Prateado, desenhada por Isadora Santos


Naquele dia Jacó, o Príncipe de Calembur, não fora punido. Peixinho Prateado não contara ao professor Savigny das peripécias do amigo, a devorar exemplares raros da Grande Biblioteca. “A gente cuida de quem ama”, dissera a tracinha para o amigo. E cuidar, para a pequena traça, era proteger. “Você será meu eterno príncipe, Jacó”. Dizia sempre, depois de passar um carão no amigo que vivia de aprontar. “Vamos virar essa página”, dizia Jacó, com bom humor. Peixinho Prateado sabia perdoar sempre, porque amar é isso: perdoar o ser amado, sem julgá-lo. Ademais, o destino deles era ser traça, a comer papéis e arrotar felicidade pelos cantos daquele lugar impregnado de conhecimento. Concordava com o professor Savigny, quando dizia que o maior pecado do mundo não é uma traça corroer um livro – o que era natural –, mas o homem ignorar um objeto tão valioso quanto um livro. “Um homem que ignora um livro, destrói conhecimento de gerações”, dizia o mestre. E havia muitos homens que faziam isso. Por isso o professor Savigny proibia as traças de comerem os livros infantis. “Enquanto houver um pequeno leitor, haverá uma grande esperança”, dizia. E eles respeitavam isso, porque sabiam que enquanto houvesse leitores, também haveria livros. E, por conseguinte, comida para as traças. “Sessão infantil está proibida para degustação”, lembravam sempre os pais de Peixinho Prateado, reforçando a recomendação do mestre. Para cuidar da filha – a quem tinham demasiado amor, como convém aos pais – eles recomendavam uma série de cuidados diários. “Evitem a sessão de best-sellers. Leitor desses livros costuma largar os exemplares em todos os lugares, tão logo finda a leitura. E por largá-los, há risco de perda”, diziam sempre, com o dedo em riste. “Corram também dos livros mais vendidos. Leitores dessa categoria estão mais preocupados em desperdiçar dinheiro – acometidos pela febre de consumo – do que ler o que dizem tais obras”. “Prefiram os clássicos. Traça que come clássico, além de adquirir conhecimento, não corre o risco de ser abandonado pelo leitor”. E Jacó quis saber por que. E os pais de Peixinho Prateado danaram-se a explicar. Diziam que leitores de clássicos são geralmente amantes da literatura. “Um clássico passa de geração em geração, sem risco de ser descartado”, explicaram certa vez. “Ah, e corram da autoajuda como o diabo foge do crucifixo”. E eles não entenderam. “Autoajuda é febre: passou, e você se esquece que um dia teve o corpo quente. E por esquecimento, vai parar nos lugares mais ingratos possíveis”. As duas tracinhas ouviam atentamente todos os conselhos. E por ouvirem, sabiam andar à revelia do medo por todos os lugares da Grande Biblioteca.
- Jacó! Um naco desse livro!
- Não gosto, Peixinho. Quem come autor local arrota empáfia.
-Ah, Jacó, que maldade!
-Prefiro o de Gestão de Empresas, porque, se me acontecer qualquer mal, o máximo que tenho é indi-gestão. Entendeu? Entendeu?
E novamente Peixinho Prateado se enfezava com os trocadilhos do amigo. Mas, no íntimo, sabia que seu velho amigo estava apenas com espírito de zombeteiro. “Todos os livros têm a sua importância. No fundo, quem se prende à leitura, liberta-se”, dissera, com ar de mestre, o professor Savigny. E libertas, todas as traças no fundo sabiam que eram. Comessem qual livro comessem.