Escrever por obrigação*

Começava a leitura de “Eu não vim fazer um discurso” – o novo livro de Gabriel García Márquez lançado no Brasil pela editora Record – quando uma amiga me ligou admirada por saber que eu iria proferir uma palestra na segunda edição da Flimar – a Feira Literária de Marechal Deodoro. “Eu sabia que você andava metido nessas coisas aí”, falou ela, antes de me perguntar por que eu iria falar sobre literatura alagoana. Confesso que fechei o livro do Gabito – me permitam a intimidade, mas se eu levo um escritor para minha cama (sim, eu tenho o hábito de ler na cama) eu tenho o direito a tal intimidade – e fiquei por algum momento pensando porque eu iria falar de literatura alagoana. Porque eu sou um leitor de literatura alagoana, pensei. Simples como respirar. E confesso que nesse momento me faltou ar. Percebi então que a única coisa simples na frase “simples como respirar” é o fato de ela ser uma frase feita. Falar de literatura é prazeroso como respirar, mas não é tão simples quanto. Até porque respirar não é tão simples como pensamos. Se assim o fosse, não batizaríamos o Sistema Respiratório de... Sistema Respiratório, com suas fossas nasais, traquéia, brônquios e trocas de gases. Mas não sei nada de medicina. E o que sei de literatura é que gosto de ler. E falar do que gosto de ler é um prazer. É como falar de um filme visto. Quem nunca fez isso? No fundo, no fundo todos somos um crítico. Temos as nossas preferências, nossos gostos – mesmo que duvidosos. Eis-me então exercendo meu papel de crítico. Se mal, minhas desculpas.
Gostaria de, no entanto, deixar de lado escritores como Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, Jorge Cooper, Jorge de Lima e tantos outros grandes nomes. Porque já se falou deles tudo: todos já foram temas de teses de várias universidades e cursos de Literatura de fora a fora do País. E cito duas grandes obras em especial que atestam o que falo: a primeira delas se chama “Entre Pitangas e Sapotis”, da jornalista alagoana Janayna Ávila, que traz uma análise da crítica produzida em Alagoas nas primeiras décadas do século 20, especialmente dos textos que tratam do Modernismo e do Regionalismo – movimentos que surgiram na época. Recomendadíssima leitura; a outra se chama “Literatura em Alagoas”, da também jornalista Simone Cavalcante, que mostra quem é quem nas letras alagoanas. Diante delas, falar de gente como Jorge de Lima, Graciliano Ramos e tantos outros nomes é chover no alagadiço. Por isso queria falar dos escritores alagoanos guardados na gaveta. Porque há muitos deles no Estado – e é possível que haja muitos entre nós. Ademais, falar dos escritores de gaveta tem lá sua vantagem. Se eu esquecer algum, por exemplo, posso usar a desculpa de que não me lembrei porque ele estava guardado na gaveta. Não tenho, portanto, a obrigação de me lembrar de todos. Mas acredito que eles têm a obrigação de se lembrar de mim como leitor. Porque eu acredito que escrever é a arte da obrigação: obrigação para com as personagens, para com você e, acima de tudo, com o leitor. Ninguém escreve pra ninguém. Escreve-se, no mínimo, para seu alterego. Até quando se escreve num diário se começa com o tradicional “querido diário” – o diário aí exercendo o papel do outro. O que seriam das cartas de amor se não fossem remetidas?
Thomas Edison, o gênio da lâmpada – elétrica, claro – já disse que “talento é 1% inspiração e 99%, transpiração”. Eu queria parafraseá-lo dizendo que escrever é 1% prazer e 99% obrigação. Em “Eu não vim fazer um discurso”, Gabriel García Marquez revela que começou a escrever “à força”.

“Nunca tinha me ocorrido que poderia ser escritor, mas, em meus tempos de estudante, Eduardo Zalamea Borda, diretor do suplemento literário do El Espectador de Bogotá, publicou um artigo no qual dizia que as novas gerações de escritores não ofereciam nada, que não se via em lugar algum um novo contista ou um novo romancista. E concluía afirmando que ele era criticado porque seu jornal não publicava nada além de nomes muito conhecidos, de escritores velhos, e nada de jovens, quando a verdade – dizia – é que não havia jovens que escrevessem”.

O fato é que ele se sentou, escreveu um conto e mandou para o jornal. “Levei um segundo susto no domingo seguinte, quando abri o jornal e lá estava, numa página inteira, meu conto, com uma nota na qual Eduardo Zalamea Borda reconhecia que havia se enganado, porque evidentemente com ‘esse conto surgia um gênio na literatura colombiana’ ou coisa parecida”, conta ele. (Aliás, também queria recomendar – como se isso fosse necessário – a leitura de “Eu não vim..,”, que reúne uma série de discursos proferidos pelo Nobel de Literatura em épocas distintas. Em especial o texto “Garrafa ao mar para o deus das palavras”, em que Márquez fala do poder das palavras: “Não é verdade que as imagens estejam substituindo as palavras, nem que as palavras podem ser extintas. Ao contrário, as imagens estão potencializando as palavras: nunca houve no mundo tantas palavras com tanto alcance, autoridade e vida própria como na imensa Babel da vida atual”.
Não fosse a obrigação que Gabriel García Márquez teve em provar que Borda estava errado, e talvez não tivéssemos o prazer de ler obras como “O amor nos tempos do cólera” e “Cem anos de solidão”. Infelizmente, os escritores de gaveta costumam se sabotar – e também aos leitores – insistindo em manter à sombra o que deveria vir à luz. É preciso manter uma rotina regular de escrita. Gosto, por exemplo, da disciplina de Carlito Lima, que já descobriu o prazer do fazer literário depois dos 60 anos. Por algum tempo, editei o caderno de Cidades da Gazeta de Alagoas e me impressionava a sua regularidade em enviar, com alguns dias de antecedência, a coluna que mantém no jornal, aos domingos. Certamente ele escreve por prazer, mas há muito de obrigação no exercício de cumprir prazos.
Certa vez, o escritor português José Saramago revelou, numa entrevista concedida ao programa Roda Vida, da TV Cultura, que se obrigava – ele usou exatamente essa palavra – a escrever uma página por dia. Nem mais nem menos. Ao final de um ano, dizia, tinha um novo livro. E ele não esperava a tal de inspiração chegar. “Todos os meus livros começam, digamos – não quero chamar de inspirações, a palavra inspiração não significa nada –, diria mais por iluminações. É como se de repente, numa superfície escura, uma luz tivesse iluminado qualquer coisa”, disse em 1997, em entrevista ao Correio Braziliense. Para quem se interessa em conhecer o processo de escrita de Saramago, não deve deixar de assistir ao documentário “José & Pilar”, do diretor português Miguel Gonçalves Mendes.
Pouca gente sabe, mas Graciliano Ramos escreveu “Vidas secas” por obrigação. Na época, o escritor alagoano vivia com a família no Rio de Janeiro e passava por sérias dificuldades financeiras. Em seu livro “O Velho Graça”, Dênis de Moraes revela que o escritor alagoano decidiu escrever o livro como se fosse contos para vendê-los separados aos jornais – inclusive fora do Brasil – e, assim, conseguir dinheiro em regime de urgência. Graciliano acreditava que se o livro fosse lançado por completo, não conseguiria grana em tempo hábil.
A verdade é que muitos escritores estão sempre adiando a obrigação da escrita. A maioria alega esperar a chegada da inspiração. Eu sou da corrente de Pablo Picasso, que disse: “Que a inspiração chegue não depende de mim. A única coisa que posso fazer é garantir que ela me encontre trabalhando”. Conheço algumas pessoas que têm um potencial incrível de escrita, mas se boicotam com argumentos que não me convencem. “Ah, publicar nesse Estado é muito difícil”, alegam. Mas difícil é escrever. Se se consegue, publicar dar-se um jeito. Se não há tantos suplementos literários nos jornais locais como havia no passado, há sempre outras possibilidades como blogs, por exemplo. O importante é não condenar os escritos à gaveta, como tem tanta gente fazendo por aí. Porque quando você se compromete com a Literatura, você passa a ter uma responsabilidade muito grande. E, acima de tudo, uma obrigação não consigo, mas com o objeto mais precioso da escrita: o leitor.


*Palestra proferida na II Flimar - Feira Literária de Marechal Deodoro.

  1. gravatar

    # by Débora Guedes - 11:33 AM

    Veja como são as coisas: Se eu soubesse que você iria proferir uma palestra na FLIMAR eu teria ido ver-te e ouvir-te. Com absoluta certeza, teria me emocionado com sua paixão pela leitura, mas também teria levado um puxão de orelha. Tá, eu levei o puxão aqui no seu blog, mas como o "carão" foi lido, doeu um poquinho menos... kkkkkkkkkkkkkkk.
    Há quanto tempo não escrevo esperando a tal da inspiração para aparecer? Abandonei meu blog e meus leitores... Quando nos dispomos a escrever, falamos sobre o que nos toca, nos assusta ou nos indigna. E o leitor, como exímio "psicólogo" do interpretar, traça nossas características e faz de nós amigos de infância.
    Confesso que senti o enrubescer da minha face ante o constrangimento de esperar a inspiração, que na verdade, como você mesmo falou, ceve nos encontrar em nossa obrigaçao diária: Escrevendo.