Um conto americano

Ricardo Darín está para o cinema argentino como o arroz está para o feijão. (Eu ia falar como o Messi está para o Barcelona, mas fiquei com pena do Neymar. Sei lá, de repente aquela aula que ele recebeu em Tóquio...). Reparando bem, na década passada parecia que todo filme do País vizinho que chegava às telas brasileiras estampava o nome do ator. Foi assim com Nove rainhas, O filho da noiva, O Clube da lua, Abutres, O Segredo dos seus olhos – só para ficar nesses – e o mais recente Um conto chinês, em que ele vive um comerciante antipático, com uma vida burocrática e ordinária, até um chinês cruzar o seu caminho. No longa-metragem de Sabastián Borensztein, o maior – e único – prazer de Roberto, o personagem de Darín, é colecionar notícias absurdas de jornais que lhe chegam trazidos por encomenda. A prática tem uma razão de ser, e mais não digo para não denunciar a trama do filme (corra à locadora, o longa acaba de sair em DVD). Por que me lembrei de tudo isso? Porque alguns dias depois de ter visto Um conto chinês, li uma notícia semelhante às recortadas pelo protagonista do filme argentino: durante a condução de um coração para transplante, no estado americano da Flórida, o helicóptero que transportava o órgão cai, matando as três pessoas que seguiam na aeronave e inutilizando o coração. E um coração inútil não serve nem para apanhar, que dirá para bater. Com exceção de informações sobre a causa não revelada do acidente, o local da queda (entre as cidades de Jacksonville e Gainesville), a notícia não falava mais nada. E claro que fiquei pensando especialmente em duas pessoas, depois de ler a história extraordinária: na dona do coração transportado – a minha mente tornou feminil o doador – e no receptor que aguardava o órgão num leito da clínica Luis Bonilla. E na minha cabeça, contínua ilha de edição, montou-se uma história: ela, funcionária pública; ele, garçom de boate, a servir bebidas e sorrisos para os clientes. Era todo coração no dia em que a viu pela primeira vez, a entrar na casa para comemorar a recente promoção no trabalho com as amigas. Coração fraco, o dele, a procurar amparo noutro peito. Quis sair pela boca, mas ele engoliu em seco. Então, serviu-lhe o órgão malfadado de bandeja, junto a uma dose de ousadia e outra de on the rocks. Ambos desacostumados: ela, a beber; ele, a doar o coração, músculo curtido em câmara fria. Quando repararam, estavam ambos embriagados. Ele nem precisou de bebida. Ofereceu ajuda para levá-la embora, já que as amigas se tinham ido há horas. Ela aceitou, sem saber por que. Saíram abraçados pela força do álcool, os corpos ziguezagueando como a desenhar frequência cardíaca pelas ruas. Passaram alguns dias sem se ver, até que ela, envergonhada, ligou para a boate para agradecer a gentileza. Ele a convidou para uma bebida. “Um café, para se correr menos riscos”, ela brincou. “Ou para se correr riscos conscientes”, ele rebateu, quase sem acreditar. Foram. Falaram sobre tudo. E ele lhe contou do problema no coração. Ela achou que fosse problema de amor. Ele riu. E antes de tocar nesse assunto, disse ser de saúde o que lhe deixava o órgão vulnerável. Era preciso um transplante. Ela se comoveu. Prometeu que faria tudo para achar-lhe um novo coração. E lhe emprestou o seu, nem tão novo assim. Ele cuidou muito bem dele, já que do seu não havia muito o que fazer. Um dia, ela chegou contando a novidade: haveria a possibilidade de um transplante em breve. Havia se informado na Luis Bonilla, eles confirmaram tudo. Só precisaria se internar para cuidar dos procedimentos. E assim ele o fez. Viajou até clínica e cuidou de obedecer à equipe médica. Ela iria depois. Sossegasse o coração. Mas um acidente de automóvel sucumbiu-lhe os planos. Morreria sem vê-lo de coração novo. Em casa, a família já sabia de seu desejo. Que seu coração batesse no peito do seu homem. Providenciaram o transporte. Um helicóptero foi disponibilizado para o transporte. Infelizmente, no meio do caminho, o mau tempo provocou uma pane na aeronave, que caiu matando os três ocupantes e inutilizando o órgão. Ele soube da notícia no mesmo dia. Os médicos falaram em adiamento do transplante. Seu já pobre coração não resistiria. Estava também inutilizado para aquela vida. Com sorte a encontraria noutro lugar e fechariam o ciclo. Porque amar é muito mais que união de corpos. Seus corações haveriam de bater em outras portas...