A cama de lastro de couro

“Outra vez sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro. Mas o sonho se ligava à recordação do papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforço para isolar o objeto do seu desejo.”
(Vidas secas)

Estudiosos de Graciliano Ramos tremam! Sinha Vitória, a companheira inseparável de Fabiano em Vidas secas, tinha um passado sombrio com o seu Tomás da bolandeira. Não sou eu quem fala. É o próprio filho – Ricardo Ramos – em seu excelente Graciliano retrato fragmentado, lançado no fim do ano passado, pela editora Globo. “Confesso: se não tivesse ouvido do próprio Graciliano, dificilmente chegaria a tal aproximação”, ressalta ele, não antes sem assegurar: “Creio que todos nós, perturbados pela literatura, muitas vezes nos interrogamos sobre as intenções do autor. Não me refiro às centrais, mas ou menos óbvias, mas às secundárias e, particularmente, àquelas que ficam na sombra e pouco se revelam. Esse lado um tanto obscuro, que na obra de Graciliano é território vasto e a respeito do qual ele falava muito”. A tal cama de lastro de couro seria o símbolo desse passado comprometedor de sinha Vitória. A cama aqui como objeto de desejo – em todos os sentidos: material e sexual. Ainda segundo o filho, o autor de Vidas secas já tinha dado mostras do quanto é chegado a uma simbologia libidinosa. Exímio estudioso da Bíblia, o ateu Graciliano Ramos era fascinado pelo livro sagrado, com seus símbolos, contos e novelas, poemas, provérbios e parábolas. Puro interesse literário. “O seu exemplar do livro, uma edição da Garnier (1864), está cheio de anotações. Em letra miúda, à margem, ele opina, glosa, divaga. Com toda a irreverência de que era capaz”, conta o filho. E por que eu me lembrei disso agora? Pois bem, um episódio narrado por Ricardo ajuda a entender a simbologia da cama. Certa feita, conta Ricardo, Graciliano discutia com os frades jesuítas a história de Ló (aquela em que anjos são enviados para Sodoma para tirar Ló e sua família de lá, pois a cidade seria destruída por Deus). A ordem do anjo era clara: quando saíssem, não poderiam olhar para a cidade, que seria sucumbida por chuva de fogo e enxofre. Mas eis que, enquanto fugiam, a mulher de Ló olhou para trás e foi transformada em estátua de sal. “Ela tinha culpa no cartório, não podia sair com o marido e as filhas”, asseverou Graciliano Ramos. “O símbolo é claro, isso de olhar para trás”, acrescentaria. Como Fabiano, sinha Vitória e os meninos, Ló e a família eram retirantes – cada uma das famílias querendo se livrar de uma praga. O “olhar pra trás”, no caso de sinha Vitória, seria a sonhada cama de lastro de couro de seu Tomás da bolandeira. “Seu Tomás tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxó, com as juntas abertas a formão, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e bem pregado. Ali podia um cristão estirar os ossos”, pensa ela. Como conhecia tão bem um objeto que, como se sabe, é algo tão pessoal e íntimo? E dana-se a fazer comparação com a cama em que dorme com o marido. “Os roncos de Fabiano eram insuportáveis. Não havia homem que roncasse tanto. Era bom levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele pau amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se”. Nem precisa falar aqui que vara e pau são símbolos fálicos, não? Levando-se pela ótica defendida por Ricardo Ramos (ouvida do próprio pai, lembrem-se), os símbolos fálicos no ambiente de Fabiano incomodavam a mulher. Por isso “era melhor esquecer o nó e pensar numa cama igual à de seu Tomás da bolandeira”. O fato é que a polêmica levantada pelo autor deve incomodar aos mais castos defensores do Velho Graça. Mas para eles, um consolo: Fabiano sabia dos pensamentos da mulher.

Para saber mais: Graciliano retrato fragmentado, de Ricardo Ramos. Editora Globo, Rio de Janeiro, 2011.  R$ 39, em média.