A Segunda Morte de Graciliano Ramos

José Sandro da Silva Amaral invadiu correndo a Rua José Pinto de Barros, no Centro de Palmeira dos Índios, sem saber que era um acervo de estatísticas. De vez em quando olhava para trás tentando conferir a pequena distância que o separava de seus perseguidores. O medo lhe enrugava o rosto, mal iluminado pela palidez da noite, deixando ainda mais sério o semblante de 25 anos. O suor – misto de nervosismo e esforço –, desfilava por seu corpo jovem, molhando hematomas tatuados pelo espancamento sofrido dois dias antes, numa guerra que mistura tráfico e instinto de sobrevivência – uma vida osso, pensou. Parou no número 90 da rua, ao perceber uma das janelas da casa aberta. No passado, era por ali que o dono da casa admirava o mundo. Um mundo feito de personagens como José Sandro: analfabeto, desempregado, pobre, marginal. Ele não conheceu o proprietário, mas achou que entrando ali poderia continuar vendo o mundo à sua maneira. Com sorte, sairia daquela vida, deixaria de dar o couro às varas, nunca mais seria preso por soldado amarelo nenhum. Pulou a janela como quem salta para a felicidade. Mal ultrapassou o portal – mágico para ele – foi atingido por dois tiros. Caiu no corredor da casa – hoje transformada em museu –, ao lado da mesa onde estão expostos relógio de pulso, caneta e barbeador do proprietário, com pequenas inscrições feitas à máquina escrever, onde se lê: “Objeto que pertenceu a Graciliano Ramos”. Os assassinos sumiram na noite mal iluminada. O corpo de José Sandro quedou-se inerte, o sangue lavando o piso onde um dia trafegaram as personagens de Caetés, conduzidas pelo proprietário da casa. Imediatamente, o museu ganhou as manchetes, não pelo que vale – uma lástima. “Homem é assassinado na Casa-Museu Graciliano Ramos”. As duas personagens – casa e assassinado – viviam, assim, seus dramas da publicidade equivocada. Abandonada pelo poder público, a casa sobrevive de esforços de poucos, quase nada diante de sua real grandeza. Em 1933, quando deixou Palmeira dos Índios para assumir o cargo de diretor de Instrução Pública de Alagoas, em Maceió, Graciliano Ramos fechou de próprio punho a residência. Guardou a chave no bolso do paletó, ajeitou a gravata com dificuldade por causa do cigarro entre os dedos, e não olhou para trás. Desde então, os alagoanos parecem repetir o mesmo gesto, passando uma chave imaginária na casa – museu! – de um dos maiores escritores mundiais, fazendo questão de não olhar para trás. Um estorvo. Por essas e outras, é que o escritor disse certa vez que Alagoas daria um belo golfo. Talvez isso já tenha acontecido e estejamos todos submersos. Não na água, como ele desejava. Mas na ignorância, que afoga todo e qualquer conhecimento.