Diário de borda em... Café pequeno

Continuo redator. Desempregado. Ando em itálico, assim, pendido pro lado. Antes parecia um “O”, de tão redondo. Hoje quem me vê solta um “ih!” de exclamação, porque é com um “I” que pareço. Um “I” em itálico, assim, fino e pendido pro lado feito a Torre de Pisa. Com a diferença de que ela é atração turística; eu, distração. Estou me acostumando a andar com a motocicleta da Ex-Fome Ado. O difícil é fazer curva para a esquerda – andar em itálico não é fácil. Mas o dono da pizzaria facilitou as coisas. Disse que eu só precisava entregar as pizzas pela redondeza, fazendo as curvas sempre para a direita. O sindicalista da empresa me criticou. Alegou que eu estava traindo a revolução. Apostei uma Coca-Cola que não era bem assim. Ele aceitou. E eu Perdi. Ele tomou o refrigerante contrariado. No final, soltou um grande e sonoro arroto, que ele jurou ter sido O Manifesto Comunista. Em arrotês. Fiquei com o pé atrás. Não sei se falei, mas estou sempre com um pé atrás. Mas dizem que isso é característico de quem anda. Troquei algumas bisnagas de cola por pacotes de sopa de letrinhas com o dono do mercadinho do bairro. Ele não entendeu quando apareci com o produto na loja. Eu expliquei que precisava descolar comida. E o estômago, que estava pregado nas costas há dias. A cola Kama era tão ruim, que outro dia, na falta de sopa, comi um pouquinho, e a infeliz até que descolou um pouco o meu estômago. Depois de relutar muito, ele aceitou a troca, desde que eu criasse um anúncio para a sopa dele. Tasquei um “Sopa de Letrinhas Vó Gal. A, E, I, O, hummm!”. Ele me deu uns pacotes prestes a se vencerem. Eu aceitei, já estava acostumado a ser mal pago. Redator é o único na agência que faz trabalho de graça. Escrever é fácil, alega quem pede os favores. “Explique-me por escrito por que é fácil”, desafiei um deles, um dia. “Aí fica difícil”. Eu discordo de quem acha que escrever é fácil. Letras são valiosas. Eu nunca conheci um título de rentabilidade chamado Design do Tesouro, por exemplo. Mas chega de filosofar. Lembrei-me que descolei um novo freela – a cola está me dando sorte. “Café pequeno”, disse-me o cliente, para explicar a tarefa. E explicou: queria lançar um novo produto no mercado. Uma marca de café destinada à intelectualidade. “Café Kant. Filosofia pura e encorpada” foi tudo o que consegui. Ele gostou, mas me deu chá de cadeira. Estou até agora sem receber. Continuo com o pires na mão. E acabo de bater a cabeça na porta. Esta é a verdade. E a verdade dói.