Diário de Borda em... Luto

Andei sumido. Não, ainda não estou tão magro assim. É que não teve trabalho na pizzaria. A moça do tele-atendimento morreu. Pendurada ao telefone. Deu trabalho para desenrolar o fio do pescoço. Tiveram que chamar o bombeiro para retirar o corpo. Ninguém sabe o que motivou a morte. Mas há tempos ela vinha falando em fazer greve de fone. Sentia-se só. Sua única companhia era o gerúndio, esse indivíduo que dizia estar chegando, estar passando, estar providenciando, mas só servia mesmo para irritar o interlocutor. Em solidariedade, o dono da Ex-Fome Ado decretou luto por três dias. E proibiu a venda de pizza de presunto. Por via das dúvidas. Chamaram um tio dela que morava no Paraguai para cuidar do enterro, um oculista chinês que só vendia óculos à vista. Com ele era olho por olho, lente por lente. Não entendia nada de português. Falava mandarim made in Paraguai. Servi-lhe de interprete. Não, não sei nada de mandarim, mas já fiz muito prato chinês com sopa de letrinhas. Lembro especialmente de Yang Zhou Chao Fan com Song Shu Gui Yu. Mas isso foi no tempo em que o dinheiro dava pra comprar mais de dois pacotes de sopa de uma vez. Sobravam-me letras e imaginação. Atualmente, a única coisa que trago nos bolsos são furos. Nos bolsos e no estômago, que não para de roncar. Quero dizer, até que parou, porque lhe dei voz de prisão. De ventre. Não sei se já falei, mas sou redator. Desempregado. E ando em itálico, assim, pendido pro lado. Estou tão fraco que minha sombra desistiu de mim.  Foi vista no corpo de outro, clareando as ideias, depois que levei um tombo e não consegui me levantar. Se não fosse a vista escura, eu juraria tê-la visto tentando me erguer. Na impossibilidade, ela preferiu lavar as mãos. É assim que se procede depois de se pegar em sujeira. Mas eu estava falando do luto na pizzaria. Depois da morte da telefonista, uma ideia fixa passou a comer o meu juízo – e eu tenho inveja dela, que pelo menos anda se alimentando de alguma coisa. Ultimamente, é a única privilegiada aqui em casa. Por uma dessas coisas inexplicáveis, me entendi muito bem com o tio oculista da moça morta. Eu falando mandarim made in Paraguai; ele falando português xing ling. Levei-o para jantar na minha casa, depois de providenciarmos o traslado do corpo da sobrinha. (O gerúndio foi reencontrar a telefonista através de uma aeromoça, que nos garantiu estar embarcando o corpo com dignidade). Com um pacote de sopa de letrinhas, fizemos Qing Tang Yu Wan, que é sopa de bolinhos de peixe. Foi quando ele me falou da ideia que passou a comer o meu quengo: oculista há anos, viu que muitos cegos não gostavam de sopa de letrinhas porque não sentiam o gosto das letras. Foi então que teve a ideia de fazer uma sopa de letrinhas no sistema braile. Disse que até agora não deu muito certo porque ainda tem muita gente queimando os dedos na hora de reconhecer as letras. Pediu a minha ajuda. E desde então estou pensando em adequar o meu paladar ao braile.