Um Índio Descerá de uma Estrela
Não é de agora. Na verdade não sei bem de quando é, mas há algum tempo tenho refletindo sobre as comemorações alusivas ao Dia da Consciência Negra. O espetáculo é bonito, mas um tanto primitivo, com músicas tribais — ainda dos primórdios africanos —, como se o negro nunca evoluísse, principalmente em relação à cultura.
É como se os próprios negros fechassem os olhos para Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento e tantos outros artistas que têm consciência de que a cultura se modernizou sim. (Confesso que entre ver dança zulu e um som brasileiro, prefiro bailar com Pixinguinha ou Luiz Melodia, verdadeiras pérolas negras.
Se é para homenagear a mama África, por que não o fazer com o que o continente tem de moderno? Na verdade, o brasileiro tem a mesma visão da África da que países como Estados Unidos têm do Brasil: leões correndo em savanas, tribos espalhadas por todos os lados e os negros vestidos como há 300 anos.
Fico imaginando Portugal, por exemplo, fazendo uma homenagem ao Brasil, com um monte de patrícios vestidos de índios (de bigode e tudo, ora pois pois), munidos de flechas e caras pintadas. Vai dizer que não acha ridículo? Pois essa é a sensação que um africano deve ter dessas festas à africana que os brasileiros fazem.
(Deixo logo claro: se quiserem me homenagear, troquem os cocares por violões e metam o aço em músicas de Chico César — pode ser até "Mama África").
É preciso preservar a cultura, mas também é preciso acompanhar o tempo. É o que pensa, por exemplo, uma amiga minha, jornalista de mão cheia, olhar atento a detalhes que o olho comum jamais veria. Linda de causar inveja a espelho.
Dia desses, pesquisando os costumes de uma tribo indígena, se apaixonou por um dos índios. Não contou história: botou na cabeça o cocar e a idéia de que o lugar dela era ao lado do moço. Fechava os olhos e se via de saia de penas, semi-nua a vagar pela tribo. Outras vezes se imaginava uma autêntica Caeté, com o desejo de comer carne humana. Sem mastigar.
Em princípio, queria se cobrir com penas ainda na cidade, para ir se acostumando aos trajes. Foi demovida da idéia porque as penas que queria — multicoloridas — eram de aves em extinção e, portanto, não pegaria bem para uma profissional esclarecida e comprometida com a natureza.
Pensou então em improvisar com penas de galinha, mas teve medo de contrair a gripe do frango.
Em casa, a família estranhou o fato de ela cantarolar músicas tribais pelos cantos, enamorada. Aos mais íntimos, confessava que o cupido a tinha atingido. De arco e flecha. Morre jurando que o cupido, na verdade, era um índio disfarçado. Um índio não, "o" índio.
Pior foi quando encasquetou de querer induzir as filhas a vestirem os trajes indígenas. De mansinho — sem que as meninas percebessem — tratou logo de ir lhes ensinando os primeiros passos do Toré. Dava pena — sem trocadilhos — ver as pobres passeando pelas ruas de mãos dadas, cabeça baixa, colares e cocares ornando os corpos infantis.
A mais nova ainda tentou justificar sua relutância em usar o vestuário. Dizia que as penas lhe faziam cócegas. Não teve jeito. Não só teve de usar como passou a comer iguarias indígenas. Já não agüentavam mais tapiocas, macaxeiras, bejus e outros acepipes que a mãe lhe empurrava, goela abaixo.
Com o tempo se acostumaram, fazer o quê? Hoje já sonham com um irmãozinho de sangue metade índio, metade cara-pálida. A bem da verdade, o único que se sentiu desconfortável foi o cão da família, um poodle sapeca que teve que andar pela casa de penacho.
This entry was posted on 11 de novembro de 2005 at 11:57 PM. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.
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