Quando João Gilberto financiava as minhas farras
Vida de estudante não é fácil. Principalmente para quem morou em república universitária. Com dinheiro contado – quando há dinheiro para se contar –, é preciso ser muito inventivo para fazer milagres e sobreviver às adversidades econômicas. Farras, nem pensar. Foi assim pelo menos durante os dois primeiros anos de universidade, em que dividi espaço na Residência Universitária Alagoana (a poética RUA localizada no Centro de Maceió) com outros 82 estudantes de vários estados brasileiros e de alguns países africanos e sul-americanos. Com muito esforço e semanas de economia, consegui comprar o meu primeiro disco, uma edição limitada com os grandes sucessos do João Gilberto. No entanto, a alegria da compra deu lugar à frustração em questão de minutos. Muito bem tinha uma relíquia em mãos, mas me faltava um equipamento para ouvi-la. E se para comprar um CD eu levei semanas, o que dizer então do tempo que levaria para adquirir o aparelho de som? Foi então que alguém deu a solução: vamos ouvir no barzinho em frente. O tal barzinho chamava-se Viracopos – não uma homenagem ao aeroporto internacional de Campinas, mas aos dotes de seus clientes. Seu Edson, o proprietário, tinha hábitos excêntricos. Não dispensava o cachimbo abastecido com fumos aromáticos nem o tabuleiro de xadrez armado a uma mesa, à disposição de quem desejasse desafiá-lo. Tudo isso sob um repertório musical selecionadíssimo que incluía a nata da MPB. Armado o plano, faltava o pato que, cantando alegremente, tivesse coragem para fazer a proposta ao dono do bar. O marreco escolhido, claro, foi o proprietário do disco, que por coincidência era eu. Titubeante, pedi para ouvir o CD. Para minha surpresa, Seu Edson adorou a ideia e se não fosse a falta de grana a minha turma teria até tomado uma cerveja ouvindo “Chega de Saudade”. Mas ainda não seria daquela vez em que viraríamos copos. A deixa veio quando o dono do Viracopos quis comprar o disquinho. Ainda não havia me tornado jornalista, mas percebi que tinha um bom material em mãos. Portanto, recusei qualquer oferta. Pela receptividade com que tinha tratado aquele bando de estudantes sem grana, dei a dica de onde ele poderia encontrar. Dois dias depois, recebo a visita do dono do bar. Cabisbaixo, disse que não havia encontrado o João Gilberto em loja nenhuma. E voltou a me fazer a oferta. Pagava o dobro. Recusei duplamente. Nem por um caminhão de cerveja. Em nome da boa música e sabendo que eu não tinha aparelho de som, Seu Edson propôs aluguel do CD. Me pagaria uma cerveja por dia, enquanto o disco permanecesse no Viracopos. Achei justo. Minha turma sem grana comemorou. Passamos a freqüentar o bar e fazer parte da turma que virava copos. Como era uma cerveja por dia, passávamos algum tempo sem ir, para o aluguel ir acumulando e, assim, ter mais copos para virar. Tudo ao som de “Desafinado”, “Samba de Uma Nota Só” e “O Barquinho”. Por um bom tempo, João Gilberto financiou as minhas farras no Viracopos. Foi lá que descobri outros grandes nomes da MPB e aprendi a jogar xadrez. Só nunca tive coragem de desafiar o proprietário do bar...
This entry was posted on 3 de abril de 2006 at 8:36 AM. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.
# by tapete vermelho - 2:15 PM
bendito dinheiro escasso!!! que aguça a vida e a imaginação!! :)
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