Registro

Ando numa irritação que tem me tirado o sono. Há algum tempo, tenho passado as madrugadas diante da televisão, canalizando forças em heróis cujos atos são paralisados por comerciais – muito mais potentes do que a velha criptonita. Tentando me distrair, jogo os olhos por canais estranhos. Num deles, um padre andrógeno, com orelhas de Spock, entoa uma cantilena imaginando um deus surdo. Repete-se insistentemente, parando aqui e acolá para fazer gestos para a câmera. Na mesa de centro, a aguardente me queima os pensamentos. Tenciono tomar um trago, deitando no chão um pouco para o santo, mas mudo de idéia porque o padreca insiste em repetir frases ensaiadas. Perco o controle e mudo o canal. Em close, uma moça travestida de homem tenta encontrar namorada, com apelos homoeróticos que assustam a apresentadora. "Meu Deus!", espanta-se a moça. Mas Deus deve estar muito ocupado com a cantilena do outro. Na rua, um cão ladra para um vigilante que devora, faminto, um cachorro-quente. Nesse barulho, a noite segue misteriosa ao encontro do dia.