As esganadas

“...O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica...”
Álvaro de Campos

Em seu livro “A arte da ficção”, o inglês David Lodge (“Um almoço nunca é de graça” – sim, a frase dá título a um de seus livros, apesar de ter neguinho por aí usando sem citar a fonte) defende que “o humor é um assunto muito subjetivo”, portanto, cada um ri do que lhe apraz. Sendo assim, até obras que não nasceram com viés cômico podem sim, nos fazer rir. Machado de Assis, por exemplo, é detentor de um humor ferino e, não raro, nos faz rir à inglesa em várias passagens de seus livros (a dedicatória irônica de “Memórias póstumas de Brás Cubas” é ou não é humor?). “A comédia ficcional”, continua Lodge, “parece ter duas fontes principais, ainda que haja uma ligação estreita entre as duas: a situação (que pressupõe sempre um personagem – uma situação cômica para um certo personagem pode não o ser para um outro) e o estilo. Nesse sentido, Jô Soares sabe o que faz nas duas searas. Prova disso é “As esganadas”, seu novo romance publicado pela Cia. das Letras. Nele, o autor de “O Xangô de Baker Street” lança mão dos mesmos artifícios de seus romances anteriores – ao misturar ficção com fatos reais – para contar a história de um assassino de gordas – que a gente já sabe de quem se trata logo nas primeiras páginas. Para investigar os crimes – que acontecem num Rio de Janeiro no fim dos anos 1930 – ele ‘exporta’ o detetive português Tobias Esteves, uma personagem literalmente saída de um poema de Fernando Pessoa – no caso, “Tabacaria”, do heterônimo Álvaro de Campos. “A amizade de Fernando Pessoa por Tobias vem das tardes infindáveis gastas nos cafés do Rossio discutindo sobre nada ou coisa nenhuma”, narra o autor.  Pura lorota. Deliciosa bazófia, é fato. Na verdade, Tobias Esteves é uma mentira muito bem contada – um detetive para quem o “ser ou não ser” do Hamlet é coisa de maricas. Para investigar os crimes – cuja ligação entre eles é o fato de as vítimas serem detentoras do pecado da gula – o lusitano prefere seguir sua intuição e seu raciocínio muitas vezes nem tão lógico: “Ouve lá. Nenhum ser humano é inocente. Tu és um ser humano. Logo, não és inocente; portanto, és culpado”. Sem trocadilhos, “As esganadas” é um livro delicioso. “Só posso dizer que a trama deixará você, ao mesmo tempo, horrorizado e com fome”, adverte Luís Fernando Veríssimo, na apresentação da obra. Ou, como diz David Lodge, “só um leitor com o coração de pedra não abriria um sorriso”. (“A arte da ficção”, aliás, é uma obra capital. O livro reúne artigos publicados por Lodge no The Independent on Sunday, no início dos anos 1990. Trás capítulos como o “Fluxo de consciência”, “Apresentação do personagem”, “Realismo mágico” e “O romance epistolar” – um gênero em que o autor desenvolve a história através de cartas – daí o nome – mas que depois de obras como “As ligações perigosas”, de Choderlos de Laclos, e com o advento do telefone e da internet, anda um tanto fora de moda. Mas isso é assunto para outra história).