Diário de borda em... Emprego

Sou redator. Desempregado. Ando em itálico, assim, pendido pro lado. Estou tão fraco que não consigo carregar nem peso na consciência. Antigamente vivia em negrito, robusto, mas a situação exigiu que eu esquecesse o Control + N. Afinei. Meus amigos dizem que sou um cara letrado. Mas as parcas economias me fizeram parar de devorar livros. Minto. No café da manhã de ontem, comi uma página do livro de receitas. Rocambole de camarão, uma delícia, não fosse o gosto mofado de livro antigo. Tive que comer a página que trazia a receita de limonada suíça, para não me engasgar. E para tirar o gosto de mofo que ficou na boca. Algumas vezes, no entanto, sobra algum dinheiro para a sopa de letrinhas, o único alimento que me mantém em pé. De guerra. Com meu estômago. Com algum esforço, consigo formar nomes de iguarias pomposas com as letrinhas que bóiam no prato. No jantar de ontem, conseguir reunir uma lagosta à termidor. Meu estômago reclamou por estar comendo propaganda enganosa. Reclamou de barriga cheia, o infeliz. Com alguma dose de imaginação, dava pra sentir o cheiro de lagosta no meu arroto. O dono da agência onde deixei meu currículo me ligou há meia hora dizendo que quer me contratar. Caprichei no título do currículo. E pus os meus defeitos num texto legal ao pé da página, em corpo 6, como convém. As letras eram tão pequenas que ele teve que procurá-las na sola do pé da página.
– Trabalhamos com comunicação de massas – disse-me ele, quando cheguei. – Precisamos de você para ampliar nossa fatia de mercado, completou, entregando-me uma caixa de pizza.
– Oito fatias – eu disse desanimado, mais para mim do que para ele. – De Aliche...
– Você não disse que sabe vender o peixe?
Fiz que sim com a cabeça antes que ele ficasse uma vara. Ele me explicou que mantinha a pizzaria como principal fonte de renda. Publicidade não dava dinheiro, justificou. “Emprestava, pelo menos?”, quis brincar, mas engoli em seco. A situação estava tão séria que nem produzir saliva eu conseguia. Há dias que eu estava matando cachorro na linguagem de sinais, que era para economizar grito. Ele me entregou o capacete e o uniforme com o nome da pizzaria estampado no peito. Ex-Fome Ado. Esse era o nome; “aqui, barriga vazia já era”, o slogan. Custei a engolir a frase. Ele me pediu pressa. O cliente aguardava o pedido. Saí contrariado, carregando as tais fatias de mercado. O cheiro entrava pelo meu nariz sem pedir licença, e ia zombar do meu estômago faminto. Tem nada não, pensei. No jantar de hoje formarei uma pizza de aliche com as letrinhas da sopa. Meu cérebro armazenou o cheiro. Facilitará o arroto final.